Raphaela Martins Pereira

NARRATIVAS ORAIS DE MULHERES CHINESAS EM MANAUS 1980-2017

No presente ensaio refletiremos sobre memórias de mulheres chinesas que migram/migraram para Manaus no interstício de 1980-2017. Para isso nos utilizaremos fundamentalmente dos diálogos estabelecidos com as fontes orais, obtidas através de entrevistas que realizamos com três chinesas migrantes e que versaram sobre suas Histórias de vida, seu trabalho e o processo de migração.
Entendemos que os discursos colocados nas entrevistas não são a verdade absoluta, mas a oralidade nos possibilita a olhar novos horizontes com a memória. Compreendemos que o modo de migrar de homens e mulheres são diferentes e que refletindo acerca das memórias e experiências desses sujeitos históricos, podemos ter dimensões da História da imigração chinesa para o Brasil.

No primeiro momento discutiremos a condição da China e quais fatores levaram os chineses a migrarem para outros países. No segundo ponto refletiremos a cerca da concepção do ser mulher na China, como a mulher chinesa é vista dentro da sociedade na qual ela está inserida, visando apresentar a história que há por trás de séculos de tradição e costumes que mantinham a margem a mulher chinesa. E em seguida debateremos em cima das fontes orais, aproximando-se das vivencias das mulheres chinesas que migraram para Manaus.

De fato, a China vem ocupando um espaço maior na economia mundial, se tornando uma grande exportadora, vários países importam seus produtos sejam eles eletrônicos ou artigos diversos. O crescimento da economia chinesa se baseia em uma politica adotada a partir 1976 onde se instituiu as ``quatro modernizações``: agricultura, indústria, defesa e ciência e tecnologia. Essas medidas impulsionaram o país tanto internamente quanto externamente, promovendo um investimento internacional intenso a partir da década de 1990.

“O estoque de capitais constitui-se, podemos dizer, como o “pulo do gato” para que a China chegasse a ser hoje não apenas a segunda maior economia do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, mas também o maior exportador e importador mundial. Ademais, fomentando a entrada de capitais globais, a China estruturou uma indústria nacional que passou a fabricar desde manufaturados simples, a produtos de alta tecnologia, como carros, motos, computadores, celulares, com vistas a exportação. (BRITO & MACIEL, 2016)”

Essa abertura econômica para o exterior impulsiona os chineses a migrarem junto com essas empresas ou se vinculando ao comércio de artigos diversos, o que importa é o fato de que com um olhar para fora do país economicamente, ocasiona perspectivas e expectativas em relação à mudança de um país com uma população superior a um bilhão de habitantes, onde a procura de emprego é bem maior. O jornal Estado de São Paulo (2011) veiculou uma interessante reportagem, que dizia que:“O Brasil é visto como a “bola da vez” por chineses em busca de um novo país”.

Os investimentos chineses e o fluxo migratório são maiores nas cidades do Rio de Janeiro e em São Paulo, mas atualmente Manaus vem ganhando um olhar diferenciado nos dois âmbitos. Em nossas pesquisas, embora não tenhamos encontrado dados estatísticos específicos acerca da presença dos chineses em Manaus foi possível observar sua presença marcante no centro da cidade. Várias lojas que constituem o comércio do Centro pertencem a chineses. Outro elemento importante a ser notado é a presença de empresas chinesas que atraídas pela isenção fiscal praticada em Manaus, via Zona Franca, tem impulsionado a vinda de muitos chineses para ocupar cargos estratégicos. Segundo o “Portal da Amazônia”, três empresas chinesas devem abrir filiais no Polo Industrial de Manaus no ano de 2014, as empresas Welling E GMCC (Guandong Midea Toshiba Compressor Corporation), integrantes do Grupo Midea Carrier, e mais o Grupo Hisense International CO. Ltda visam investir cerca de US$ 15 milhões, projetando cerca de 20 mil empregos na capital amazonense.

No presente, o nosso olhar recai sobre as mulheres chinesas, pois entendemos também que os sentidos de migrar são diferentes para homens e mulheres e desde nossas primeiras observações pudemos perceber a presença significativa de mulheres que chegaram e ainda chegam, seja acompanhando irmãos, pais, tios ou maridos ou mesmos sozinhas. E são justamente as vivências dessas mulheres que nos impulsionou à pesquisa. Compreender como reconstroem suas vidas, suas relações, como se adaptam a uma nova cultura, se elas impõem e como impõe suas culturas. Através dessas mulheres chinesas na capital do Amazonas podem-se acessar as suas memorias desde suas vidas na China até a vinda para Manaus, observando-se as dificuldades de sobrevivência até a adequação de novos costumes e a procura de espaço em uma sociedade e neste sentido, podemos também compreender a própria constituição das relações sociais em Manaus.Seguindo essa perspectiva utilizamos da oralidade para dar maior visibilidade a essas experiências. Entendemos que a memória possui várias dimensões. Assim, não é apenas o que lembramos, mas o quê lembramos, porque lembramos e como lembramos. É preciso considerar também os silêncios, os esquecimentos, e fundamentalmente pensar em sua dimensão coletiva, ou seja, a memória é histórica e sofre oscilações em dados momentos. Como Michael Pollak enfatiza “A memória deve ser entendida também, ou, sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes.” (POLLAK, 1989)
A história oral nos abra um leque de informações que não estão descritas nos documentos oficiais, mas que não nos impede de consultá-los e analisa-los criticamente. Janaina Amado aponta que “O uso sistemático do testemunho oral possibilita a história oral esclarecer trajetórias individuais, eventos ou processos que as vezes não tem como entendidos ou elucidados de outra forma: são depoimentos de analfabetos, rebeldes, mulheres, crianças, miseráveis, prisioneiros, loucos.” (AMADO, 1995:125)

Trazer a tona a histórias dessas mulheres que na sociedade chinesa foram deixadas de lado, mostrar suas relações com o mundo. É resgatar a memorias dessas mulheres no presente, para interpretar o passado.

Para compreendermos as relações que as mulheres chinesas compõem em Manaus é necessário situar-se na história da mulher na China. Entendemos que a sociedade chinesa tem tradições milenares culturalmente e socialmente. A mulher chinesa, por tradição e por ser uma sociedade também patriarcal, ocupou por séculos uma posição marginalizada e submissa.

“A mulher chinesa tem um lugar apagado na sociedade chinesa. Ela é o elemento Yin, escuro, noctívago, recolhido. O seu brilho lunar a exercer-se, deve ser discreto e confinar-se aos aposentos interiores da casa. Ela é dominada por um poder patriarcal que abarca todas as esferas do seu mundo.” (ALVES, 2002)

A filosofa Ana Cristina Alves coloca que a mulher chinesa exemplar nos séculos anteriores era aquela que seguia fielmente os preceitos da submissão, castidade e obediência ao ser masculino, a mulher que vivia para o lar, sem grandes sonhos e sem virtudes. Porém a filosofa apresenta as mulheres que desafiavam todo o sistema, as mulheres do mundo, as quais deviam ser evitadas apenas por sentirem o mundo como ele é “As mulheres do mundo, com ou sem marido, eram aquelas que estavam de algum modo, em contato com a sociedade que as rodeava. Viviam comprometidas com o mundo do trabalho, da arte e, até do estrangeiro”.(ALVES, 2002)

Podemos observar que a mulher chinesa foi submetida a uma educação rigorosa e conservadora em que não tinha nem o direito de se expressar sexualmente, pois isso ia de encontro aos valores impostos por uma sociedade machista que visava controlar ao máximo essas mulheres. Situemos que a China nesse momento da década de 1980 está em um profundo processo de reforma política e social, mas entendemos que culturalmente as mudanças são muito mais lentas. A China em 1949 se tornou o Estado Socialista da China e as implementações a nova constituição era a igualdade de gênero entre homens e mulheres.

Observamos que desde final do século XX, muitas leis foram incorporadas na Constituição para garantir direitos das mulheres chinesas, mas será que realmente essas mulheres gozam de todos os direitos descritos na lei? A socióloga Fatima Patrício coloca que “Na prática, muitas dessas leis e regulamentações não são implementadas ou fiscalizadas adequadamente, muitos fatores (econômico, politico e cultural) contribuem para o desfasamento.”

Contudo, isso não significa que essas mulheres não lutem no dia a dia por seus direitos, por seu espaço. As mulheres chinesas vêm vencendo barreiras milenares nos últimos 40 anos, têm colocado suas vozes em evidencia e seguem lutando pelos seus interesses e se emancipando. Como Dona Toka uma das nossas primeiras entrevistadas nos conta como foi sua chegada a capital amazonense:

“Queria ir para os Estados Unidos, mas vim para o Brasil, certo. Daí eu vim, fiquei sete meses em São Paulo. Passei um ano e meio em Montes das Cruzes. Então depois de lá vim para cá isso em 1970, 1974. Daí para cá nós veio para Manaus. Primeiro local que eu fiquei foi o bairro de São Francisco. Daí gostamos daqui. Enfrentamos no alto e no baixo, dificuldade, enfim até hoje.”

Dona Toka migrou para outro país em um momento de intensas mudanças na China, culturalmente e socialmente. Apesar dos chineses impulsionarem a China economicamente, essas transformações acabam não abrangendo todos na população, visto que o índice populacional da China é muito elevado. Dona Toka migrou para outro país em buscar de melhores condições de vida. Ela nos conta que quando chegou em Manaus fora logo trabalhar com seu irmão em uma loja de eletrônicos que tinham no Centro da cidade.

Dona Toka é super ativa nas atividades econômica de Manaus, ela nos fala com bastante afinco “O que eu puder fazer pelo Amazonas, tô aqui.” É importante problematizar esse discurso, pois, visto que ela é uma mulher migrante em um país totalmente diferente do seu, e o interesse é ser aceita para poder lucrar com suas atividades comerciais. Em um momento da entrevista deixa soltar que está trabalhando com outros chineses para trazer novidades para Manaus: “Agora, nesse momento estamos trazendo de outras cidades, novidades pra Zona Franca, porque parece que não tem. É na área de confecção, enfim trazendo empresas de fora para montar indústria.”

Dona Toka é uma mulher ativa, com seus sessenta e poucos anos (Ela não me revelou sua idade), casada, dona de uma loja de artigos chineses na Rua Guilherme Moreira, personalidade forte e como ela mesma diz “Meu compromisso é social”, na entrevista ressalta sempre que o que puder fazer pelo Amazonas ela faz, e através da igreja ajuda pessoas com doenças em Manaus com a acupuntura.

A chinesa Annie Wang, 30 anos, veio para Manaus a cerca de 2 anos, pois seu marido é manauara e se conheceram quando ele estava na China a negócios. Annie é da província de Anhuí na China, seus pais são fazendeiros e tem um irmão mais novo. Ela nos conta um pouco da sua infância na China de forma bem alegre.

“Durante a minha infância eu tinha muita diversão e boas memórias, como vivíamos em uma aldeia, tínhamos mais liberdades comparadas a outras crianças que viviam em cidades. Como nossos pais estão trabalhando na fazenda, não tinham muito tempo para restringir a gente do que fazer. Também toda nossa comida éramos nós mesmo que produziam, tudo era natural.”

Sobre direitos e liberdade, Annie relata:

“As mulheres na China hoje em dia são muito diferentes de 10-20 anos atrás, a maioria delas está na indústria. Mas, em relação às roupas, as mulheres de 25 anos ainda se vestem bem mais conservador do que as mulheres no Brasil. Nos direito das mulheres, sinto que o Brasil está bem melhor, soube que aqui o homem não pode bater na mulher, e se acontecer elas podem denunciar. Para nós mulheres chinesas não temos essa lei muito clara, e aqui as mulheres tem mais liberdade.”

Becky Liu, 28 anos, chegou em Manaus em 2010 ressalta que o machismo ainda é muito latente:

“Realmente no passado a mulher era bem submissa, ela não podia assumir algumas posições. Por exemplo, eu jamais poderia assumir o cargo que tenho na fábrica, no passado. Então depois da revolução, as coisas começarão a mudar e hoje o cenário é diferente. E a gente consegue ver muitas mulheres em cargos altos na sociedade chinesa. Mas até hoje consigo também ver casos de pessoas que... homens dizendo “não mulher vai ficar em casa, vai cozinhar, vai cuidar de criança”... Mas eu no caso acabo trabalhando mais, porque eu vou cuidar de filho, da casa e tudo mais.”

 Com relação a sua vida em Manaus, ela diz que aqui é mais difícil para ela devido à mobilidade e comida, o cardápio não é muito variado e ela sofre mais pressão no trabalho por causa da sua relação com a China, ou seja, os chefes chineses cobram muito mais dela do que os trabalhadores brasileiros:

“Mais difícil em Manaus: a vida de Manaus não é tão adequada quanto à China, hoje em dia tudo em China é cada vez mais desenvolvido do que Manaus. Aqui não há algumas compras, nenhum lugar para jogar, menos produto pode comprar... Mais pressão e tarefa no trabalho, não para uma mulher, mas como chinesa.”
A oralidade nos ajuda a trazer luz para essas questões, no caso das mulheres chinesas, nos auxilia a entender os contrastes que há em ser uma mulher chinesa na China e em outro país. Janaína Amado expõe:

“O sujeito quando fala de suas experiências/vivências, está apontando para a forma como lida com as questões postas no seu cotidiano, como reelabora seu passado partindo de suas experiências presentes, pois ao rememorar seu passado, este vem à luz do seu presente, as narrativas, portanto, ainda que sejam reflexões individuais, estão dentro de um conjunto de valores, sentidos e costumes que é também de grupo. Sendo assim, compreende-se que as fontes orais conferem às pesquisas aspectos que muitas vezes foram negligenciados pelas fontes escritas, possibilitando dessa forma, alargar o entendimento e captar intenções, sentimentos, razões e motivações de pessoas que participaram ou tiveram algum envolvimento com os fatos e/ou eventos ou processos que se deseja conhecer.” (AMADO, 1995)

Percebemos que as mulheres chinesas migram de uma forma diferente do homem chinês, há uma carga psicológica, cultural e tradicional muito presente em seu meio.  O modo de se expressar, de se vestir, de agir ainda é complicado, fazem tudo de uma maneira discreta, que não chamem atenção. Podem ser consideradas mulheres do mundo, de casa, da vida, mas antes de tudo elas são as mulheres que elas quiserem ser, que discretamente vão assumindo seus lugares na sociedade, lutando diariamente pelo direito de serem elas mesmas.

Podemos observar que há dois aspectos nas entrevistas de Dona Toka, Annie e Becky, o primeiro como estabelecem ligações com o lugar em que vivem, e o segundo é a forma como elas concebem o mundo em que vivem. Dona Toka no momento da entrevista tenta esconder como foi sua vida na China, porém Annie ressalta que a vida para as mulheres chinesas é ainda difícil.  E Becky mostra que sim é difícil, mas as mulheres chinesas estão cada vez mais mudando seus destinos, traçando planos e ocupando espaços que antigamente eram relegados a elas. Estão sendo agentes de suas próprias histórias.

Referências
Raphaela Martins Pereira, graduanda do curso de História da Universidade Federal do Amazonas.
Email: raphaelamartinspereira@hotmail.com

ALVES, Ana Cristina. A mulher chinesa contemporânea. Administração, Macau, n.57, vol. XV, 2002-2003, p. 1015-1028
AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral.  História, São Paulo, v. 14, 1995, p.125-136.
BRITO, Cleiton Ferreira Maciel. MACIEL, Jeanne Mariel Brito de Moura. Transformações do rural – urbano na China e os gerentes chineses no Amazonas: novas conexões do trabalho. Revista Askésis, vol. 5, janeiro de 2016.
CHANG, Sheng Shu. Chineses no Rio de Janeiro. Leituras da História, ed.17.   
HERMANN, Pedro Thomas Vilela. Indicadores da atividade econômica na China. Mestrado em Economia no Departamento de Economia da Universidade Federal de São Paulo.
PATRICIO, Fátima Cristina das Neves. Os direitos da mulher na China. Mestrado em Estudos Chineses da Universidade de Aveiro, 2011.
POLLAK, Michel. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,     vol. 5, n.10, 1992, p. 200-2012.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.