Nathan Henrique da Silva Lermen

A PROVÍNCIA CHINESA DOS APÁTRIDAS DE ORIGEM RUSSA: HEILONGJIANG E OS MIGRANTES DA DÉCADA DE 1950

O século XX representou grandes transformações em escala global principalmente no que tange aos conflitos mundiais, foram constantes desorganizações geográficas, econômicas e políticas que levaram nações a completa desordem. A Segunda Grande Guerra (1939-1945) se tornou um marco na história do século XX e em sua duração se pôde constatar uma crise de controle e políticas que afetaram o grande número de refugiados e deslocados.

A situação de alguns russos foi muito discutida no fim do conflito, várias famílias migraram para algumas regiões específicas do globo, conduzidas por motivos maiores, e em decorrência disto tiveram suas nacionalidades revogadas. Compreender as razões do primeiro fluxo de imigrantes russos com destino ao território chinês, é adentrar nas intenções czarista Alexandre III em conectar os dois extremos do território russo. Além deste, é necessário destacar o governo de seu filho, Nicolau II até 1917, ano que se estabelece a Revolução Russa que se demonstra como um segundo motivo de migração.

“[...] no início de 1891, a Rússia começara a trabalhar intensamente em seu programa de desenvolvimento industrial, passando a vigorar tarifas protecionistas em sua economia e o projeto de construção de sua infraestrutura ferroviária. A malha ferroviária a ser construída nesta época mudaria significativamente a economia do país, pois ligaria toda sua extensão através da linha Transiberiana. Até então, este era o maior projeto ferroviário do mundo.” (CHAGAS, p.77, 2014)

Comandado por Alexandre II, a construção da importante ferrovia mobilizou russos a migrarem para outras regiões no país, e após um tratado com o governo chinês, ficou estabelecido um acordo de que a rodovia poderia passar pela localidade da Manchúria, no nordeste da China. Jilin, Liaoning e Heilongjiang, são províncias que pertencem à Manchúria, e é em Heilongjiang que a presença russa mais se manifestou. Harbin, capital da província, foi fundada por famílias russas que transformaram o local em uma extensão de seu país de origem.


In: https://thetranssiberians.com/2015/12/12/the-trans-manchurian/

“Uma população de empregados da ferrovia, com suas respectivas famílias, incluindo engenheiros, operários e técnicos, mudou-se para a região onde seria construída a via férrea, para executar o trabalho e, em 1898, fundaram Harbin, como uma vila ferroviária.” (RABINOWITZ, p.23, 2008)

O nascimento do local está intrinsecamente ligado ao projeto da construção da ferrovia Trans-Manchuriana, um dos trechos da ferrovia Trans-Siberiana, que possibilitaria uma forma simplificada de se chegar ao porto de Vladivostok. Entre o caminho, havia Harbin, uma pequena vila que se desenvolvia estruturalmente. O crescimento da cidade foi inevitável, com uma população mista que abrigava um povo com diferentes religiões, desde ortodoxos a judeus, Harbin foi se despontando como um importante local da relação Rússia-China. A cidade chinesa com o passar dos anos se vê inserida em uma reviravolta nos rumos políticos e governamentais do Império Russo, que afetam diretamente os seus habitantes.

Para a compreensão da questão e do processo que culminou no segundo movimento migratório para a China, é necessário retornar ao governo do sucessor de Alexandre III, o czar Nicolau II. O seu governocom todos os aspectos absolutistas, foi um marco para história daquele país que estava sob o comando de um governante autoritário, que detinha um poder único e era líder de uma nação com vários problemas estruturais, que iam desde a baixa industrialização até as elevadas taxas de fome. O descontentamento da população foi consequência das tomadas de decisões do czar e o anseio por mudanças tomou conta do povo, uma das manifestações desta pretensão de mudança foi o episódio do Domingo Sangrento de 1905, em que um movimento pacífico de pessoas que reivindicavam por tomadas de novas atitudes tornou-se um evento de extrema repressão por parte de Nicolau II.
Após algumas revoltas que resultaram na saída da família Romanov do poder, foi necessário o estabelecimento de um novo governante do império. Um dos nomes que já se cogitava e despontava para o comando era o de Lênin, entre as políticas e a crise do país durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), há uma série de eventos que sucumbem em uma guerra civil. A Guerra Civil Russa (1918-1921), de um lado tinha os bolcheviques guiados por Lênin, denominados por exército vermelho, e do outro tinha os antibolcheviques, que receberam a designação de exército branco. Lênin, vence a guerra com uma nação fragmentada e que sofria pelas consequências do conflito. Neste período, várias pessoas do exército branco se refugiam em outras localidades, como é o caso de Harbin, na China. Estas pessoas, comumente chamadas de russos brancos, por fazerem parte do Movimento Branco ou por se posicionarem contra Lênin, perdem suas cidadanias.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), define apátridas como;

“São pessoas que não têm sua nacionalidade reconhecida por nenhum país. A apatridia ocorre por várias razões, como discriminação contra minorias na legislação nacional, falha em reconhecer todos os residentes do país como cidadãos quando este país se torna independente (secessão de Estados) e conflitos de leis entre países.”

Harbin teve seu território tomado por uma grande quantidade de russos brancos, além de ter sido dominado posteriormente em 1932, pela invasão japonesa que manteve o controle do território até 1945, quando o exército soviético o recuperou. Este ano de grande significado para a trama da Segunda Guerra Mundial, também representou uma mudança para os habitantes de Harbin. A chegada na terra chinesa pelos soviéticos, resultou no encontro de um local onde;

“[...] havia tanto refugiados apátridas, que fugiram do regime comunista, quanto cidadãos soviéticos que trabalhavam na construção do trecho Trans-manchuriano da Ferrovia Transiberiana. Além deles, havia também imigrantes e colonos russos que saíram da Rússia antes de 1917 e aqueles que se tornaram cidadãos chineses.” (RUSEISHVILI, p.4, 2018) 

Os soviéticos pressionaram o governo chinês, para a expulsão deste povo, e com a revolução comunista no território no final da década de 1940, o comando foi atendido levando em consideração a influência soviética dos russos no novo governo de Mao Tsé Tung, a partir disto a deportação das pessoas de origem russa teve sua abertura.Nesse sentido, era-se necessário um local de refúgio, uma nova pátria onde estes refugiados pudessem ser abrigados, e o Brasil esteve dentre os selecionados para receber o contingente de migrantes,assim como Austrália, processo este facilitado em território brasileiro, uma vez que segundo Salles (2004), em 1945 o governo nacional reabre a possibilidade de imigração no território e motivados pelo recebimento de mão de obra, o Brasil aceita receber estes deslocados de guerra. No que concernea vinda ao país, o povo da região de Heilongjiang foi encaminhado ao porto de Hong Kong em uma distância de aproximadamente 3000 Km, e de acordo com Ruseishvili (2018), de lá os migrantes recebiam um certificado de viagem que deveriam conter um visto permanente do Consulado do Brasil em Hong Kong no qual permitisse a entrada no país.

O Brasil foi um dos países que recebeu muitos refugiados no pós-Segunda Guerra Mundial, a situação foi descrita conforme Ruseishvili (2018, p.3), “cerca de 21.000 deslocados de guerra da Europa foram recebidos pelo Brasil, entre 1947 e 1949, e cerca de 43.000 até o final dos anos 1950. Na segunda metade da década de 1950, o país recebeu também alguns refugiados russos da China.” Grande parte dos apátridas chegaram pelo porto do Rio de Janeiro e muitos fixaram residência posteriormente no estado de São Paulo.

Referências
Nathan Henrique da Silva Lermen é graduando de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste – Paraná (Unicentro). Integra o Laboratório de Culturas, Etnias e Identificações da mesma instituição. Mail: lermen.nathan@gmail.com

ACNUR. Apátridas – ACNUR. Disponível em:<http://www.acnur.org/portugues/quem-ajudamos/apatridas/>. Acesso em: 14 de agosto de 2018
CHAGAS, Debora Cristina Nascimento. A geopolítica dos recursos naturais da Rússia: uma análise sob a perspectiva de Vladimir Putin. Revista Vernáculo, [S.l.], ago. 2014. ISSN 2317-4021. Disponível em:<https://revistas.ufpr.br/vernaculo/article/view/37140>.Acesso em: 10 de agosto 2018.
RABINOWITZ, D.C.F. Um olhar sobre a vida de imigrantes russos idosos. Dissertação de mestrado, São Paulo: PUC-SP, 2008.
RUSEISHVILI, Svetlana. Perfil sociodemográfico e distribuição territorial dos russos em São Paulo: deslocados de guerra da Europa e refugiados da China após a Segunda Guerra Mundial. Revista Brasileira de Estudos de População,v.35, n.3, p. 1-20, 2018.
SALLES, M. R. R. Imigração, família e redes sociais: a experiência de “deslocados de guerra”, em São Paulo, no pós-Segunda Guerra Mundial. In: XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Anais... Caxambu/MG: Abep, 2004.

3 comentários:

  1. Bom dia.
    Interessante seu texto, não tinha conhecimento sobre esse processo migratório. Tenho uma dúvida,
    como fica a questão da identificação dessas pessoas? No texto se afirma que estes russos ficaram
    por alguns anos na China, e novas gerações nasceram lá, certo? Estas pessoas se identificavam como
    chinesas e adotaram costumes asiáticos?

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    1. Olá, obrigado pela pergunta.
      A cidade chinesa de Harbin, conservava muitos aspectos da cultura russa, justamente por ter se originado daqueles trabalhadores que participaram da construção da ferrovia no final do século XIX. As escolas, igrejas e o espaço familiar eram rodeados pela cultura russa. A partir de relatos e entrevistas orais, se percebe que mesmo nascidos na China, esses imigrantes falavam o idioma de seus pais, cresceram com a culinária russa e se identificavam como tais,e não como chineses. Ainda que apátridas, o nascimento em um país diferente, não os impediu de resgatar as velhas tradições que permaneciam o meio social.

      Nathan Henrique da Silva Lermen

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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