Nelson Rocha Neto

BÁRBAROS, PIRATAS E ESPIÕES: OS PORTUGUESES NA ÁSIA

Ao longo dos séculos cada sociedade construiu o seu próprio universo suscitando contemplação e infundindo desígnios assombrosos. Seus elementos culturais mesclavam instruções geográficas com lendas, o real com a fantasia. Legaram-nos o delírio estupefaciente que se conservou de uma visão insólita com o qual não se pode impedir o embate. Ouvir adquiria uma importância maior do que ver. Assim, os cânticos sobre os homens e seres monstruosos que habitavam os confins do velho mundo sugestionavam metamorficamente o olhar. Todavia, a capacidade de diferenciar culturalmente o maravilhoso está enevoada na significação dos seus códigos. Manifesta-se com a admissão da estranhez que remete a “outro lugar quase sempre identificado a países longínquos, aos quais um fascínio irresistível atribui o valor nostálgico de um bem perdido que deve ser recuperado”. [Lanciani, 1991, p. 22].

Outrora os relatos das viagens marítimas expressavam os interesses dos mandatários áulicos, transitando literariamente desde as convenções culturais estabelecidas às particularidades do narrador. Não procuravam descrever com exatidão a realidade, porém guiavam-se pelo tradicionalismo organizacional do gênero cronístico. A reprodução numerosa das narrativas de exploração, com seus elementos poéticos e quiméricos interligados as ininterruptas buscas edênicas por vias fluviais, disseminaram mitos para as intransponíveis localizações que possibilitaram a ressignificação do mundo conhecido. Por isto, representação da cumplicidade é uma manifestação enganosa e efêmera. O encontro das culturas propagou-se em uma clareia assimetricamente infectada: quando correu a boca miúda que D. Pedro de Portugal regressou de suas andanças pela Europa com uma brochura da obra de Marco Polo, Il Milione, seus relatos a respeito do Oriente despertaram o desejo de singrar os mares a procura da Índia e do Catai com a incumbência de encontrar o reino cristão do Preste João. [D’Intino, 1992]. Por volta de 1487, D. João II articulou Afonso Paiva e Pêro da Covilhã com a incumbência de alcançarem a Etiópia:

“Não é claro se pretendiam saber novas do chamado Preste João, o suposto rei cristão, ou reunir informação sobre o comércio da Índia. Certo é que, tendo Afonso de Paiva desaparecido, Pêro da Covilhã viajou pela Índia, pela Pérsia e pela África Oriental, enviando para o rei, a partir do Cairo, uma relação detalhada do que vira e ouvira. [...] Em todo caso, parece certo que por trás do envio destes viajantes-espiões estava já um crescente interesse nas especiarias da Ásia, cuja comercialização na Europa era até então controlada pelos venezianos, através do Mediterrâneo e do mar Vermelho”. [Monteiro, 2009, p. 212].

Por séculos, os navegantes europeus projetaram os seus anseios nos folclóricos bródios campesinos, no mundo dourado dos contos cocanianos. O velo de ouro tão cobiçado por Jasão e os seus Argonautas, transfigurou-se no país imaginário de Offir, cuja riqueza do rei Salomão teria procedência. Porém, esta região sofreu mudanças na geolocalização de acordo com os desenvolvimentos náuticos: procuraram em África, América e Ásia. Por conseguinte, a epopeia naval lusa desaguou no Índico, reconvertida na subjugação de novas rotas mercantis. Marinheiros noutro tempo conduzidos pelos ecos de Plínio e Ptolomeu sobre a geografia e perigos que se escondiam em toda a costa do Malabar evocaram Marco Polo a respeito dos indícios da diligência missionária abissínia na ilha de Socotorá, infestada de corsários. A região testemunhou cisões religiosas e deparou-se, ao longo do século XIV, com a expansão muçulmana. Logo, o Decão repartiu-se em dois blocos: o dos sultões Bahmanidas (providos pelos portos de Chaul, Dabhol e Goa) e o dos reis hindus reunidos ao redor do rajá de Vijayanagar (servidos pelos portos de Honavar, Bhatkal e Cananor). [Ferreira, 1985].

“As regiões costeiras de Canara e Malabar, ao sul de Goa [...] se dividiam entre alguns insignificantes rajás hindus independentes, dos quais o samorim (rajá do mar) de Calicute era o mais importante. Se a Índia Setentrional era politicamente hindu, ao contrário do centro e do norte muçulmanos, abrigava muitas comunidades pacíficas de comerciantes árabes e de outros maometanos espalhadas pelos estados hindus, onde eram muito respeitadas e possuíam considerável influência”. [Boxer, 2002, p. 56].

No tempo em que a armada de Vasco da Gama atracou em Calicute, estabeleceu o uso da diplomacia com a finalidade de evitar contendas com os turcos e coletar informações lançando mão, com efeito, da espionagem. Consequência do episódio referente à expulsão dos judeus da península ibérica, os quais muitos se estabeleceram no Médio Oriente conquistando postos de prestígio em várias atividades: econômicas, técnicas, conselheiros políticos e financeiros. Deveras familiarizados com os idiomas ibéricos, variantes árabes, dentre outros. Possuíam parentes dispersos em várias regiões portando-se como cristãos, pois conheciam “bem os contextos sociais das terras por onde viajavam – fez com que se tornassem especialistas nos “assuntos de informação”. Desde os primórdios da expansão marítima, percebemos o préstimo de cristãos-novos as autoridades portuguesas na Índia. O arquétipo do espião dirigiu-se para Gaspar da Gama ou Gaspar das Índias que prestou serviços a Vasco da Gama em 1498, foi “língua” (intérprete) de Pedro Álvares Cabral em 1500 e informante de D. Francisco de Almeida em 1505. [Tavim, 2008, on-line].

Logo, o estratagema rudimentar de espionagem adotado por Portugal procurava informações a respeito da milícia, do poderio marítimo e do comércio estabelecido no Índico Ocidental. Somente com a conquista de Malaca os portugueses puderam “desbravar” a China, conduzidos por Jorge de Álvares (1513) e Rafael Perestrelo (1515). Tomé Pires em sua obra, Suma Oriental, descreve uma possível altercação sobre a conquista do litoral chinês, depreciando o poderio bélico do Celeste Império:

“[...] Dizem que a China é de mais de mil juncos, que cada um trata onde lhe bem vem. Mas é gente fraca e, segundo o medo que têm a malaios e jaus, bem certo será que uma nau de 400 tonéis faria despovoar Quantom, a qual despovoada teria a China grande perda. [...] E para a subjugar o governador de Malaca a obediência nossa, havia mester não tanto como dizem, porque é gente muito fraca e ligeira de desbaratar. E afirmam as pessoas [e] capitães que muitas vezes foram lá que com dez naus subjugaria o governador das índias, que tomou Malaca, toda a China nas beiras do mar”. [Pires, 1515, on-line].

A panóplia forjada em novas paragens originou a “primeira embaixada portuguesa à China [...] com a missão de entregar ao imperador uma carta do rei D. Manuel I”, em 1517. Porém, o plúrimo de quiprocós produzidos pela incompreensão que distingue a idealização portuguesa e chinesa de “embaixada”, suscitou na violação constante das regras diplomáticas, ininteligíveis entre a cultura oriental e a ocidental. Portanto, a embaixada liderada por Tomé Pires passou por demoradas permissões, vigílias e deslocamentos, além da falsificação da missiva enviada pelos intérpretes de Cantão (outubro de 1517) a Pequim (janeiro de 1520) para o imperador. Cristóvão Vieira, um dos integrantes da desastrosa comitiva, assim relatou após abrir a carta do rei de Portugal: “foi nela achado ao revés do que os línguas escreveram; pareceu-lhes a todos que enganosamente entramos na terra da China para lhe ver a terra”. [D’Intino, 1992, p. 212-213].

A conferência luso-sínica evidenciou a diversidade das nuances culturais. Os chineses julgavam-se exclusivamente civilizados, relegando à barbárie a todos os estrangeiros cujas pretensões limitavam-se a vassalos do Império do Meio. Já os portugueses empregavam a via para dissolver a cultura das sociedades gentílicas, infligindo pela violência as suas regras para o comércio, alterando suas rotinas e as fundamentando nos princípios e práticas do cristianismo, tornando-as tributárias do rei de Portugal. Deste modo, a propagação da barbárie ocasionou, entre aqueles grupos subavaliados como socialmente inferiores a “[...] ruptura e colapso dos sistemas de regras e comportamento moral pelos quais todas as sociedades controlam as relações entre seus membros e, em menor extensão, entre seus membros e os de outras sociedades”. [Hobsbawm, 1998, p. 269]. Conseguintemente na visão chinesa os estrangeiros eram:

“[...], portanto, selvagens (fan-ren). Pelo que os portugueses compreenderam, são selvagens aqueles que não pertencem à “terra de Deus”, e portanto “que não conhecem Deus nem terra”. Mas fan-ren também se aplica ao criminoso, ao delinquente, ao culpado, ao que viola, infringe, transgride. Os portugueses são homens como os chineses, mas de uma espécie inferior não muito recomendável, um pouco como podiam ser os barbaroi em relação aos gregos, que os acusavam de práticas bestiais, em particular a de devorar fetos humanos”. [Gruzinski, 2015, p. 169].

Em vista disso, o uso da força bruta tomou o lugar da rivalidade comercial pacífica. Os descendentes bem-aventurados de Lusus perpetraram combates ao Oriente, pois “a presença portuguesa confundiu-se sempre com a guerra, por vezes com a diplomacia, moldada pelos parâmetros das culturas aí prevalecentes”. [Monteiro, 2009, p. 219]. O empreendimento marítimo português ocasionalmente é categorizado como uma empresa bandoleira, selecionada dentre corsários-mercadores, protagonizado inicialmente por Pedro Álvares Cabral no bombardeio à Calicute. Logo, a elite portuguesa certificou-se que o reino do Preste João não se localizava nas Índias, composta por potentados muçulmanos diversos, hindus e demais rivais gentios de outros credos de complicadas relações desde o primeiro contato. Ademais, a segunda expedição de Vasco da Gama, embora tenha estabelecido feitorias (Cochim e Cananor), foi particularmente marcada pela irascibilidade reforçando o estereótipo barbaresco no instante em que aborda “uma embarcação de Meca, rouba cerca de 22000 ducados e a mete no fundo com trezentos passageiros, entre os quais muitas mulheres e crianças”. [Ferreira, 1985, p. 50].

Todavia, os procedimentos lusitanos de abordagem no mar da China meridional, com os mesmos estratagemas brutais e vantajosos no Índico, resultaram inicialmente na desgraça da companhia mercantil europeia. Posteriormente, o triunfo em romper as barreiras do ambicionado comércio chinês ocorreu sob cláusulas estipuladas pelos mandatários chineses e árabes, que por séculos desenvolviam um comércio com as populações das Índias Orientais, e não pelas imposições portuguesas, pois “quem determina que o mar se encontra sob a soberania de alguém, atribui essa soberania a quem tem em seu poder os portos mais próximos e a costa circunvizinha”. [Madureira, 1993, p. 118].

No alvorecer do século XVI a dinastia Ming privou-se da expansão político-marítima reduzindo a presença das frotas chinesas pelo Índico. Diferentemente dos tempos em que exerceram domínio sobre o golfo pérsico e a Somalilândia, imortalizados nas prosas de Marco Polo, Ibn Battuta e do pirata eunuco Zheng He, os chineses encontravam-se mais temerosos quanto à presença dos wokou (piratas japoneses, embora boa parcela fosse chinesa) na costa oriental e a iminência dos mongóis e manchus nômades ao norte da China. Os impérios do Egito, da Pérsia e de Vijayanagar não gozavam de embarcações armadas no Índico. Os árabes já não ditavam as regras comerciais marítimas da Ásia das monções, de Ormuz ao Cantão como noutro tempo. Além da negligência chinesa quanto à manutenção das suas bases navais e a diminuição da presença árabe em seu monopólio do comércio no oceano Índico, alguns fatores culturais colaboraram para que os portugueses operassem na extrema periferia de um sistema tributário regional, alcançando dimensões globais. Por volta de 1500 as mais elevadas castas hindus consideravam atravessar o oceano um sacrilégio que resultava em prejuízos monetários, além dos ritos de purificação. O constante contato com outras comunidades maculadas resultava em profanação, pois “muitos governantes asiáticos partilhavam a convicção do xá Bahadur, rei de Guzerate, de que ‘as guerras no mar são assuntos de mercadores, e não envolvem o prestígio dos reis’”. [Boxer, 2002. p. 65].

Outro fator a salientar o êxito lusitano foi uma aliança entre Afonso de Albuquerque, o Terribil, e o pirata hindu Timoja que sugeriu impedir a entrada do mar Vermelho e submeter ao jugo Goa. Após a tomada de Malaca, durante trinta e dois anos (1522-1554) o governo imperial chinês ensimesmou-se, não mantendo oficialmente comércio com os bárbaros ocidentais. Essa postura constituiu o tráfico clandestino, uma associação marginal europeia incorporada aos interesses das províncias costeiras chinesas. Os portugueses edificaram muitas bases provisórias, como por exemplo, Chincheo (Quan Zhou) e Liampó (Quen Hai), cujos mandarins fingiam desconhecer o modus operandi dos contrabandistas:

"A decisão política de fechar o comércio marítimo teve conseqüências muito severas, não apenas em nível político e econômico. A tecnologia naval dos chineses, que desde o século XII acumulara inovação após inovação para poder produzir navios tão grandes quanto seguros e fáceis de governar, decaiu irreparavelmente ao longo do século XVI, justamente quando estavam começando a chegar ao país portugueses e castelhanos, seguidos no século XVII pelos holandeses e ingleses: e todos chegaram por via marítima. Todos os textos, sem exceção, surpreendem-se da infinidade de barcos que navegam pelos rios e costas do reino, bem como da quantidade de pessoas que vivem nos barcos: o que eles não viram é que esta era uma peculiaridade muito específica do Sudeste, especialmente dos hakka e dos dan, que eram chamados depreciativamente de shuishangren, pessoas da água, e cuja existência marginal era precisamente o que os obrigava a flutuar entre o comércio ilegal e a pirataria." [Folch, 2006, p. 279].

Ademais, o alicerce do poder naval ibérico eram suas embarcações munidas pela eficácia destruidora da pesada artilharia que despertou o interesse chinês referente à tecnologia dos intrusos na construção de carracas e galeões, fundição de canhões e fabricação de pólvora:

"As primeiras armas de fogo provavelmente chegaram à China desde os otomanos no início do século 16 [...], embora tenham sido finalmente os jesuítas que ensinaram os chineses em meados do século XVII [...] a construir armas operacionais". [Folch, 2006, p. 280].

Certamente os chineses possuíam conhecimentos técnicos sobre o uso dos canhões, porém tornaram úteis as contendas com os bárbaros do grande oceano ocidental para aprimorar e reproduzir certos procedimentos das máquinas destruidoras, contrabandeadas provavelmente por intermediários malaios para dentro do Império. Embora os portugueses fossem considerados bárbaros aos olhos chineses, detinham certa vantagem desafiando o alto-mar, pois “[...] também aparecem como seres que circulam em barcos rápidos, dotados de grande potência de fogo e, portanto suscetíveis de exibir, em matéria militar, tecnologias sofisticadas”. [Gruzinski, 2015, p. 170].

O “César do Oriente”, Afonso de Albuquerque, recrutava marinheiros asiáticos sob a disciplina de poucos oficiais europeus ou eurasianos. As embarcações que percorriam Goa, Macau e Nagasaki, eram tripuladas em sua maioria por escravizados asiáticos e negros, defendidas por cerca de vinte soldados e bombardeiros portugueses. Também, muitos marinheiros, pilotos e contramestres eram guzerates muçulmanos ou malabares. A dificuldade em manter as possessões do comércio marítimo do Brasil até a Ásia e sua extrema dispersão, além da reduzida população de Portugal para o destacamento de tropas, encorajou as expedições dos corsários turcos Piri Reis e Mir Ali Bey. O primeiro saqueou Mascate e realizou um cerco a fortaleza de Ormuz com um número inferior em relação às tropas defensoras. Já o segundo, com uma embarcação mal armada expulsou os lusitanos de quase toda costa suaíli exceto Melinde, capturando cerca de vinte navios. Malaca sofreu com as escaramuças javanesas, enquanto os malaios obtinham predominância com suas embarcações a remo nos estuários e rios. Os corsários do Malabar interceptavam barcos de provisões, minando com prejuízos o comércio costeiro português, pois um ataque a Goa era uma agressão a Portugal. [Boxer, 2002].

Contudo, a alternância das contentas entre os corsários e piratas turcos, egípcios, malabares, malaios e etc., não abalou os alicerces da solidez naval lusitana, embora sempre estivessem em posição de inferioridade numérica e recursos. Somente os chineses fizeram-no com os seus juncos de guerra, ainda assim, sua atuação limitou-se em águas territoriais por determinação do governo imperial. [Boxer, 2002]. Os marinheiros lusos amiúde confrontados por sociedades equiparadas à deles, compartilhavam a decadência sobre os planos de manter o monopólio das especiarias no Oriente. A presença infamante dos intrusos portugueses, comedores de pedra e bebedores de sangue que trajavam roupas de ferro, exibia-se indecorosamente em alguns territórios do Império: não pagavam as tarifas sobre as mercadorias que desembarcavam, barravam o acesso do povo ao comércio, despojavam os juncos de outros mercadores, perambulavam exibindo armas e propagandearam uma execução capital. [Gruzinski, 2015].

Segundo alguns historiadores, a presença colonizadora lusa em Macau ou as contínuas contendas em Malaca e Goa não alteraram a ordem do governo estabelecido e sua rede comercial marítima. A debilidade referente à influência política e regimento de tropas não encontraram meios de rechaçar definitivamente as investidas hostis. Assim, os acordos firmados com monarcas e mercadores locais tornaram possível o estabelecimento da preeminência comerciária e territorial inicialmente obtida. Em toda a vastidão litorânea até as Índias Orientais, as possessões portuguesas não iam além de algumas fortalezas à beira-mar e vilarejos litorâneos amurados ou guarnecidos por paliçadas. Portanto, o império luso arraigou-se periférico e os seus “segundos Argonautas” conservaram-se às margens de um sistema econômico imemoriável sem obter êxito em sua dissolução. [Madureira, 1993].

Por fim, devemos ter em mente que os portugueses deslocaram-se à Ásia em um período particularmente oportuno quando analisamos o panorama asiático na virada do século XV para o XVI. Vários fatores desencadearam a “crise asiática”: o crescimento demográfico e a escassez de terras cultiváveis do Fujian, juntamente com as restrições das normas para ordenamento pesqueiro, criaram um cenário insustentável para as populações que viviam da labuta marítima, embora os portugueses inicialmente tivessem contatos esporádicos com pequenos grupos compostos de poucos barcos engajados alternadamente na pesca, no comércio e na pirataria.  O ápice ocorreu ao longo do reinado de Jiajing, cujas costas chinesas foram devastadas pelos wokou. [Folch, 2006]. Espiões mapearam obscuramente as descrições das “conquistas” imperiais que avançavam progressivamente desde o litoral da África oriental ligado à Arábia e à Índia nos panoramas políticos, culturais e econômicos, ao “Estado da Índia” entre o cabo da Boa Esperança, Golfo Pérsico, Japão, Timor e por vezes a faixa de terra localizada entre os Gates ocidentais e o mar. [Boxer, 2002]. Independentemente da enforja de um projeto imperial manuelino propagandeado com propósitos de dimensões messiânicas em busca de almas e especiarias, a presença lusitana estabeleceu-se tenuemente entre a união da prática mercantil pacífica com a pirataria desestabilizando o status quo. [Monteiro, 2009]. De resto, a presteza marítima proveio da artilharia de bordo das caravelas, cujo nenhum outro povo do Índico obteve tecnologia suficiente para rivalizar com igualdade frente às fortalezas flutuantes do povo bárbaro da ocidental praia lusitana.

Referências
Nelson Rocha Neto é graduado em História e especialista em História Cultural pela Universidade Tuiuti do Paraná.
E-mail: nelsonrochaneto@gmail.com

BOXER, Charles Ralph. A navegação e as especiarias nos mares asiáticos (1500-1600). In: ______. O império marítimo português 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 54-79.
D’INTINO, Raffaella. À procura do Catai. In: CHANDEIGNE, Michel (org.). Lisboa ultramarina: 1415-1580: a invenção do mundo pelos navegadores portugueses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. p. 210-223.
FERREIRA, Ana Maria Pereira. O essencial sobre o corso e a pirataria. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985.
FOLCH, Dolors. Piratas y flotas de China según los testimonios castellanos del siglo XVI. In: AGUILAR, Pedro San Ginés (ed.). La Investigación sobre Asia Pacífico en España. Granada: Editorial de Granada, 2006. p. 267-286.
GRUZINSKI, Serge. A águia e o dragão: ambições europeias e a mundialização no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
HOBSBAWM, Eric. Barbárie: manual do usuário. In: ______. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 268-280.
LANCIANI, Giulia. O maravilhoso como critério de diferenciação entre sistemas culturais. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, v. 11, n. 21, p. 21-26, set. 1990/fev. 1991.
MADUREIRA, Luís. O Mostrengo e o Encoberto: mirabilia e a ordem do saber nos discursos narrativos da expansão. Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra, n. 38, p. 105-121, dez. 1993.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. A monarquia e as conquistas (1481-1557). In: RAMOS, Rui (coord.). História de Portugal. Portugal: A Esfera dos Livros, 2009. p. 199-225.
PIRES, Tomé. Suma Oriental. Visões da China na literatura ibérica dos séculos XVI e XVII. Antologia documental. Revista de Cultura. Instituto Cultural de Macau. Disponível em: www.icm.gov.mo/rc/viewer/30031/1929. Acesso em: 16 mai. 2018.
TAVIM, José Alberto Rodrigues da Silva. Um tema conturbado: a espionagem dos judeus relativa ao Oceano Índico, no contexto dos Impérios Português e Otomano (século XVI). Alguns casos paradigmáticos. Disponível em: www2.iict.pt/?idc=102&idi=13957. Acesso em: 16 mai. 2018.

11 comentários:

  1. Olá Nelson. Parabéns pelo texto. Minha pergunta é referente a quase inexistente exposição da perspectiva oriental em relação as invasões portuguesas e dos demais países europeus. Você acha que a perspectiva eurocêntrica ditada nas escolas prejudica o ensino da história como um todo e faz com que haja a perda de conhecimentos relevantes no ensino de história dentro das salas de aula? Obrigada.

    Crislli Vieira Alves Bezerra.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Saudações Crislli,

      Certamente há perdas. Porém, neste caso específico das navegações portuguesas, além do papel cristianizador e comerciário, seus relatos detalhados a respeito dos pequenos progressos, notícias dos territórios, grupos sociais, etc., até hoje nos permitem “novas descobertas”. Segundo o linguista Paul Teyssier, os portugueses modificaram a visão que o homem tinha de si e afetou todos os campos da atividade humana: relações políticas, econômicas, artes, literatura, moral, religião. A mensagem dos “descobrimentos” produziu o mito da Utopia. Em sala de aula não deveríamos deixar-nos levar por juízos prévios de valor em relação à percepção da especificidade de cada etnia. É necessário despertar a sensibilidade para a cultura do outro, pois muitas fontes foram perdidas, destruídas ou subtraídas dos países invadidos ou colonizados. Cabe-nos desenraizar as ideologias disseminadas pelo colonizador, estimulando a produção do saber e lançando luz sobre as ideias preconcebidas.

      Nelson Rocha Neto

      Excluir
  2. Boa noite,

    Obviamente os lusos focaram a China por ser a maior potência na Ásia, mas devido as proximidades, houve contato com a Coréia e Japão?

    Eduardo de Moraes Faria
    Graduando em História na Universidade Estadual de Maringá

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eduardo, obrigado pela participação

      Os portugueses foram os primeiros europeus a estabelecer contato com o Japão (Cipango) por volta de 1543. O controverso navegador Fernão Mendes Pinto foi um deles, seguido por Jorge Álvares que redigiu um dos mais antigos relatos em castelhano em 1548. O intercâmbio comercial com o Japão era tão restrito quanto a China e somente por volta de 1557 foi intensificado. Enquanto os portugueses mantivessem comércio “oficialmente” com a China, eram proibidos de comerciar com os “anões ladrões” da Ilha-Império. O contato com a Coreia ocorria ocasionalmente entre as rotas de Macau e Japão, e provavelmente durante a intenção de invasão ao “reino ermitão” capitaneada pelo general japonês Toyotomi Hideyoshi, pois entre suas tropas havia cerca de quinze mil soldados cristãos sob o comando do convertido general Konishi Yukinaga. Evento que causou nos burocratas chineses suspeita sobre quaisquer estrangeiros.

      Nelson Rocha Neto

      Excluir
  3. Caro Nelson, parabéns pelo texto. Fiquei contudo sem saber ao certo qual é a sua perspectiva sobre este processo. Abraço, Rômulo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Salve Rômulo,

      O propósito deste ensaio foi discorrer sobre o empreendimento periférico de expansão marítima portuguesa e suas consequências para a manutenção do monopólio das especiarias.

      Nelson Rocha Neto

      Excluir
  4. Bom dia Prof. Nelson. Parabéns pela expalnação. Minha pergunta é referente a quase inexistente exposição da perspectiva oriental em relação as invasões portuguesas e dos demais países europeus. Em sua opinião podemos afirmar que as invasões portuguesas desde Vasco da Gama abriu margem para invasões também dos corsários em Calicute? Grato a atenção.

    Prof. Dr. James Magalhães
    jamesmagalhães1@hotmail.com

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá prof. James, agradeço a pergunta,

      A dificuldade em expor a perspectiva oriental dos fatos, no caso chinês, situa-se na restrição do contato com os povos não chineses. Outrora, com as viagens do almirante Zheng He, a China por um período prosperou nas políticas exploratórias, reforçando o comércio e domínio dos povos considerados bárbaros. Porém, sua política interna alterou no momento em que a ameaça mongol tornou-se um agravante no norte do país, utilizando seus navios apenas para trafegarem perto das costas litorâneas. Segundo o historiador Roger Crowley, as frotas da dinastia Ming eram tão avançadas e caras quando uma expedição lunar. Com a morte de Zheng He as viagens marítimas foram proibidas e seus registros destruídos, assim os imperadores voltaram suas preocupações para a fortificação da Grande Muralha.

      Calicute em seu apogeu era uma cidade cosmopolita favorecida pelo controle de comunidades mercantis muçulmanas, pois o Rajá do Mar não tomava parte diretamente na administração portuária. Também, a fortificação da cidade era praticamente inexistente. Acredito que Vasco da Gama não abriu margem para os atos de pirataria ou corso, pois na costa do Malabar já corriam notícias da pirataria organizada desde o período medievo. Mas, as atitudes intensificaram com o bombardeio realizado por Pedro Álvares Cabral e posteriormente com aliança realizada entre o pirata hindu Timoja e Afonso de Albuquerque. As guerras de corso progrediram após uma curta relação pacífica entre Calicute e os portugueses, com a quebra do acordo, multiplicaram as ações dos depredadores corsários em todos os portos e bases com escaramuças endêmicas intercaladas em períodos pacíficos. Os portugueses entraram em derrocada somente com a possessão holandesa de grande parte dos portos do Malabar ao longo do século XVII.

      Nelson Rocha Neto

      Excluir
  5. Excelente explanação Prof. Nelson, muito grato à sua atenção.

    James Magalhães
    jamesmagalhaes1@hotmail.com

    ResponderExcluir
  6. Parabéns pela esplanaçao professor. Minha pergunta remete ao império português, com todas essas informações obtidas e os objetos levados , se foi possível um ainfluencia oriental no império, e se sim, onde onde se é visível essa influência?

    LUCAS DE LIMA FURINI

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado pela participação Lucas,

      Os Ibéricos "interligaram" África, Ásia, América e Oceania. "Inventaram" o mundo, tornando-se os olhos e ouvidos na Europa. A troca cultural pluricivilizacional os influenciou mutuamente alterando as sociedades e suas políticas. Alicerçaram novos horizontes culturais comportamentais (alimentação, vestuário, etc.) e intelectuais (filosofia, linguagem, etc.). Dessa forma, os elementos colhidos entre o diálogo civilizacional proporcionou que as navegações corrigissem equívocos referentes à observação de fatos e fenômenos até então ignotos em textos antigos e medievos, conjuntamente com a astronomia e geografia. Talvez uma das maiores contribuições chinesas para o ocidente foi o concebimento da bússola no século I, que passou por inúmeras reformulações e somente no início do século XV ganhou a importância que conhecemos hoje;
      Também, a medicina na península ibérica recebeu influencias orientais, embora fosse restrita aos olhos eclesiásticos, as práticas de dissecação do corpo humano e a descrição do fluxo sanguíneo podem ser encontradas no livro “Clássico de Medicina do Imperador Amarelo de Zhou Chuncai”. Do mesmo modo, notabilizamos a presença jesuíta no Oriente, sobretudo em Goa e em Macau, com os missionários que compilaram os conhecimentos sobre as drogas medicinais da Índia;
      Na culinária, naturalmente, a presença das especiarias nos receituários da época significou alterações oriundas das influências de além-mar (a inclusão do cravo, canela, pimenta, gengibre, noz-moscada, etc.). Novos condimentos possibilitaram a conservação dos alimentos por um período maior de tempo durante as viagens marítimas;
      A porcelana chinesa e a indiana foram apresentadas aos europeus por volta de 1500 que somente 200 anos depois desenvolveram as técnicas para o seu fabrico. Também, a arte da azulejaria chegou entre os ibéricos por intermédio dos árabes. Os artesãos adaptaram as técnicas mouriscas ao gosto ocidental e por volta de 1560 abriram as primeiras oficinas de azulejos lisboetas;
      Estes foram apenas alguns parcos exemplos que consegui cavoucar, porém conjuntamente encontramos influencias orientais nas artes, filosofia, literatura, moda, botânica, linguagem e etc., até os dias atuais.

      Nelson Rocha Neto

      Excluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.