Alina Silva Sousa de Miranda

DA REALIDADE, NO VIŚUDDHA-VEDĀNTA-AṢṬAKAM

Os cânticos na tradição védica estão separados mediante a origem e a maneira de cantar. Chama-se “slokam” um verso que, respeitando a pronúncia do sânscrito,não possui forma rígida no canto. A maior parte dos slokams são retirados de “stotrams”, composições poéticas maiores, como um poema, cujos temas centrais variam. O viśuddha-vedānta-aṣṭakam é um stotram composto de oito slokans, escrito por Vishvanatha. Este artigo tem o objetivo de explorar o quinto slokam dessa composição, que trata do termo “sat”. “Sat significa “realidade”, “existente” e “verdadeiro”, tal como é pensado na tradição védica guardada pela cultura hindu. Para explorar seu ensinamento, porém, é preciso, antes, comentar brevemente algumas questões acerca do universo cultural e histórico que envolve a composição, sem as quais o estudo do verso não alcança sua grandeza e importância.

O stotram e seu universo cultural
O papel da Índia na Ásia pode ser comparável ao da Grécia na Europa. Porém,a mais simples menção a elaainda traz à mente todo o fascínio que o Oriente distante e misterioso - com suas línguas, religiões e costumes os mais diversos - exerce sobre a imaginação ocidental. Só a persistência desse imaginário estereotipado e fantasioso já deveria exigir o estudo dessa civilização com acuidade.

Porém, diante do que o estudo dessa civilização pode nos trazer, é muito pouco manter-se no combate ao “preconceito clássico”, já definido por Guenón(2015, p. 19-21) como a incapacidade intelectual do ocidental de transpor o Mediterrâneo e, com isso, fundar a ideia de uma autenticidade civilizacional com os gregos – o chamado “milagre grego” -isso, já sabemos, é a verdadeira mistificação da História. É preciso encarar o desafio de estudar a Índia por suas próprias fontes, procurar entendê-la a partir do seu repertório.

Oslokam que aqui propomos o estudo exige, pois,a ênfase em dois aspectos da sociedade indiana: a ausência de História, no sentido de historiografia; e a permanência da oralidade. Isso desafia a teoria historiográfica ocidental a refletir sobre a realidade para além de si mesma: para além do tempo e para além da escrita.

Em termos de historiografia, o mundo indo-gangético sempre causou desconforto ao ocidente pela ausência do método histórico. A existência de diferentes cronologias sempre foi argumento de que é difícil estudar esse mundo pela falta de fontes adequadas.Porém, a Índia, apensar de não ter historiografia,oferece uma boa reflexão ao ofício. O fato dessa civilização permanecer ainda hoje ligada por mil fibras a seu longínquo passado, presentificando-o a todo momento, provoca a questão basilar dessa área de estudos: se o passado é útil porque explica o presente ou se ele o é apenas por ser uma referência de realidade ao qual o presente lança questões,como a noção mais moderna ou pós-moderna dos estudos históricos reivindica. Afinal, a despeito de toda e qualquer mudança e apesar das influências externas e seculares vindas do Ocidente, a mesma tradição que se perde nos obscuros inícios da história indiana se mantém. A Índia mantém vivo e à salvo no presente seu passado milenar. Se as velhas civilizações do Nilo, do Tigre e do Eufrates encerraram, há milênios, suas glórias, o Indo e o Ganges vivem, ainda hoje, a força de sua tradição. Como? O que é o tempo e a realidade para essa civilização? Como as fontes nos ajudam a responder essas interrogações e qual o sentido disso na experiência espaço-temporal dos indianos?No limite, como pensar a história fora da História?Uma vez respondidas essas interrogações, mesmo que preliminarmente, deveríamos avançar e perguntar como o entendimento dessa experiência pode ajudar a reoxigenar os conceitos de tempo e realidade do mundo ocidental, em particular, nas ciências humanas e na atividade historiográfica.

O segundo aspecto é a permanência da oralidade. Só é possível que essa presença do passado seja tão evidente devido a tradição oral, tradição viva ainda hoje na Índia. E essa observação já nos afasta de uma fantasia purista antropológica que pretende encontrar uma cultura não assediada pelo seu exterior. A tradição mantém-se viva justamente pela sua capacidade de se adaptar sem perder sua ligação com seu princípio, com a fonte de conhecimento que são os Vedas.

Entendida para além de uma faculdade humana, uma vez que nos comunicamos nessa modalidade, a oralidade é o local onde repousa o conhecimento. Na Índia, a tradição oral é a própria tradição viva de ensino. Não se trata, pois, de uma metodologia oral para recuperar um saber que não está escrito. Mas sim: ainda que os versos estejam escritos, eles nada significam sem a tradição oral que os respaldam. Nessa sociedade, é muito claro que o conhecimento está disponível para todos que se comprometem a adquiri-lo, nunca para aqueles que, ainda que expostos, não tomam a iniciativa de ouvir. A escrita e o saber não são sinônimos. O processo tradicional de ensino exige a escuta e, longe de expressar que o conhecimento está na pessoa do “guru”, revela que o gesto verdadeiro e autêntico é colocar-se aos pés da oralidade, num ritual realizado há milhares de anos que exige a presença e o consentimento de ambos os envolvidos: o professor e o aluno. A confiança está sempre na tradição, e não na figura do professor, que é só um instrumento para que um relacionamento se estabeleça e a mensagem dos Vedas seja passada. O termo tradicional refere-se a isso. Nas palavras do físico Smith (p. 19),“tradicional é precisamente mais que (uma perspectiva) histórica, transcendendo o estatuto de uma contingência histórica, o que implica dizer que ela incorpora um elemento de Revelação (...) e da eternidade”. Porém, o sentido dessa qualificação “eternidade”,só explica nos termos da própria tradição. E esse é o tema do slokam: sobre a realidade, realidade esta que está para além do tempo.

Nesse sentido, para compreender essa sociedade oral e o próprio slokam, é necessário mais que um exercício de erudição. À tradução pura e simples, é preciso estar imerso no exercício de escuta, identificando-se tanto quanto possível à mentalidade daquele que o pensou, remediando as incompreensões.Creditar toda a verdade à escrita, ao texto,é esquecer que o ensinamento oral precedeu em quase todos os lugares o ensinamento escrito. De modo geral, um escrito tradicional não é, na maior parte dos casos, mais que a fixação relativamente recente de um ensinamento que era transmitido primeiro oralmente e ao qual é bem raro que se possa assinalar um autor. É ainda Guénon que afirma (2015, p. 30)

“A pretensão à originalidade intelectual, que contribuiu em grande parte para o nascimento dos sistemas filosóficos é, mesmo entre os Ocidentais, algo totalmente moderno, que a Idade Média ignorava ainda; as ideias puras e as doutrinas tradicionais nunca constituíram a propriedade de tal ou qual indivíduo, e as particularidades biográficas daqueles que as expuseram e interpretaram são da mínima importância”.

Assim, a autoria não é mais relevante que a mensagem. E essa desimportância da individualização das concepções é um forte argumento para explicar a ausência de História. Às afirmações de que a literatura histórica indiana não se elevou acima do nível das crônicas e dos romances pomposos, e que detalhes de lugar e datas nunca foram fixados, mesmo em se tratando da vida dos grandes homens – afirmações antes demeritórias à elevação intelectual da Índia -,ocorre hoje o reconhecimento de que 1) a poesia e a palavra ofertada sempre foram superiores à marcação cronológica sublunar à maneira ocidental/grega; 2) o hindu não tem a mesma noção de cronologia compreendida no sentido rigoroso que o ocidental prefere atribuir-lhe, nem a experiência imediata tem valor de verdade. Como afirma Guha(2002, p. 63), “experience stands for truth in the European narrative”. O valor dado ao sentido histórico e sua relação com a experiência humana no mundo, à falta de termo de comparação, é ofuscado quando se esquece que a Índia, por exemplo, até a conquista inglesa, desenvolveu sua civilização fora da História (Ariès, 2013, p. 114). A contingência da vida humana é desprezível quando comparada à ênfase no Absoluto que impele todo o pensamento indiano.

Para compreender, então, a tradição indiana em seus próprios termos, o estudo minucioso dos stotrams, ou mesmo slokams, é extremamente relevante. À falta de cronologia rígida, devemos nos ater à farta literatura salvaguardada por esta civilização, que mesmo sendo uma sociedade oral, guarda o significado profundo e metafórico do que é realidade também em textos que, se estudados de forma apropriada, estão abertos ao entendimento.

A visão de “sat” no viśuddha-vedānta-aṣṭakam
É no quinto verso dessa composição que o autor trata do aspecto “sat”, da existência, da realidade. É importante frisar que as palavras em todo o método de ensinamento védico não têm o papel de explicar, mas de apontar para o entendimento do que se pretende dizer. A fala, a palavra, é apenas um meio para compreensão, utilizada para negar enganos, não para apontar qualidades; no caso, tratar do aspecto “sat” é uma maneira de apontar para o entendimento do que é a realidade. Sendo absoluto, “sat”não tem características, não pode ser descrito, não pode ser adjetivado. Adjetivos imprimem limitação ao objeto: se for largo, não é estreito, tudo que é comprido, não é curto, e assim por diante.

Para entender o slokam (sem desconsiderar que este é um estudo introdutório e a própria escrita cria limites maiores que a explicação oral), segue a escrita em sânscrito,a transliteração convencional e a tradução.

“सन्नासतस्सतो वापि नामान्ता विषया उत । अनिर्वाङ्महिमा यस्या मायाविन् यै नमो नमः ॥५॥
sannāsatassato vāpi nāmāntā viṣayā uta | anirvāṅmahimā yasyā māyāvinyai namo namaḥ ||5||” – Saudações de novo e de novo para a ilusionista, da qual a glória é indescritível. [E de que forma é indescritível? Assim:] “o que existe não surge do que existe nem mesmo do que não existe”. Os objetos são aqueles dos quais o fim é o nome [e não somente o início]”.

Anirvāṅmahimā yasyā māyāvinyai namo namaḥ. Quer dizer, saudações à ilusionista que é capaz de criar a aparência de realidade através da individualização, essa é sua glória indescritível. Vamos a um exemplo: uma árvore. O que é uma árvore? Raiz, caule, folha, flor e fruto, juntos. Se, dessa árvore, tirarmos todas as folhas, o que temos?Sem folhas,mantemos a ideia de árvore em nossa percepção. Mas, ao olhar para as folhas, não podemos afirmar que temos uma árvore. Se tirarmos as flores e os frutos também: ao olharmos para o que foi tirado, flores e fruto, eles não são árvore, mas a mantemos à vista.Se retirarmos o caule, porém, provavelmente a ideia de árvore desaparece. Ao tirar cada uma das partes, não tiramos “árvore” em nenhuma ocasião. Então, que é a árvore? Caule é árvore? Não é. A árvore é um conceito individualizado, uma forma que criamos na mente e interagimos com ela. Damos realidade a ela, mas essa realidade é uma realidade dependente, dependente de cada parte do conjunto, no caso, árvore depende, para existir, das partes, mas as partes não são árvore, por sua vez. Essa capacidade de fazer existir onde não há existência -māyā– é reverenciada no início do verso.

Estudar o termo “sat” é parte da indagação acerca da verdade, tattva-viveka. Acompanhando o raciocínio de Glória Arieira, nos comentários do Tattvabodhah, texto de Shankara (2014, p. 44), que trata o tema: a palavra “sat” vem da raiz verbal “as”, que significa “ser”.A verdade, tattva, para a tradição védica, é que existe um único real, “satyam”, e tudo o mais é aparente, “mithyã”.Viveka é a discriminação do que é “tattva”, a verdade, ou seja, a discriminação entre satyam e mithyã. Sat é sinônimo de Ãtmã e de satyam, e todos fazem referência à verdade que éeterna, imutável e absoluta.Sat é o sempre existente, aquilo que nunca muda e, portanto, não pode ser negado nos três tempos: presente, passado e futuro, trikãla-abãdhitam.Sat é a base do próprio tempo.

Esse conhecimento, apesar de abstrato, tem uma implicação muito concreta na vida mesma, como também para a ideia de História. O conhecimento sobre o Ãtmã, ou a reflexão sobre o que é sat, a verdade, é feita por aquele que deseja mokṣa, ou seja, a liberação. Liberação de que? Liberação do sentimento de limitação e de insatisfação que atormenta a vida e causa sofrimento.“Mokso me bhuyãditcchã”, significa exatamente isso: o desejo “que haja liberação em mim”. Este é um desejo urgente daqueles que querem aprender a lidar com o fluxo de mudanças inexorável da vida: mudanças no corpo, nos pensamentos, nas decisões, nas conclusões, etc. Mudanças, no fim, cujo significado está na base da palavra “história”.

Só podemos historiar algo se nos apercebemos das mudanças do objeto e, nessa medida, “fazer história” é sempre partir do ponto de vista do indivíduo que percebe e articula tempo/mudança e narração. A liberação que se fala na tradição védica é sempre da mudança, do samsãra, no limite, da história. Daí a Índia não ter historiografia, uma escrita da história, e ao mesmo tempo ela dedicar atenção ao significado de sat, aquilo que não muda, que é imutável.

Samsãra não é a vida em si, mas a interpretação errada de si mesmo e do mundo.A liberação que a tradição védica fala é desse julgamento equivocado da nossa identidade, que nos aprisiona a um círculo de sofrimento. Uma vez que o entendimento do que é o ser humano está alinhado ao que é a realidade, sat,a história, tal como entendemos seu objeto no ocidente - a vida humana no tempo - tem uma realidade mithyã, aparente.Mithyã não é o falso, mas o que é passível de experimentação mediante sua realidade dependente. Tendo discriminação,mais importante, então, é dar ênfase ao que é a própria realidade em si.

Ademais, o desejo de liberação advém da argumentação lógica de que para toda mudança ocorrer é preciso algo que suporte esse movimento, algo que seja fixo, que seja a base. Advém, também da percepção empírica individual: apesar do fluxo de mudanças que ocorrem na vida de cada um, na história de cada um, há sempre o reconhecimento de que o indivíduo sabe quem ele é, todo mundo acorda diariamente reconhecendo-se o mesmo. Na visão dos Vedas, essa permanência é chamada de Ãtmã, ou sat, e está para além da memória e do tempo.

Sat ou ãtmã, como afirma Glória Arieira,

“é como o Sol e está sempre presente. Mesmo quando as nuvens o cobrem, ele continua lá; o encobrir é em relação a nossa visão do Sol, não a ele mesmo. Da mesma forma, mesmo quando a plenitude parece ter sumido, devido à presença de vários pensamentos de preocupação e insatisfação, ela permanece lá como o Ser”.(Shankara, 2014, p. 77)

Ãtmã não é aquilo com o que nós nos identificamos: nosso corpo, nossos pensamentos, nossas ações e, por ser diferente disso, seu conhecimento oportuniza a pessoa a encontrar um centro em sua vida, centro do qual vem toda sua força e liberdade.A liberdade é, então, ver-se livre de um modo de pensar e estar no mundo que aprisiona –que faz crer que é possível “adquirir” liberdade. Esse verbo, “adquirir”, não pode ser usado com liberdade porque, uma vez que se precise adquirir, significa que não se tem; e uma vez que se pretenda adquirir, sanciona-se a ideia de que alguém ou algo pode “dar” liberdade às pessoas. O conhecimento do Ãtmã esclarece que a liberdade só é possível se ela já estiver presente na pessoa que a busca, sendo, portanto, um problema da ordem do conhecimento, da mudança de cognição, da eliminação da ignorância que a impede de perceber essa presença.A liberação não é uma conquista, não é um produto da história. É uma liberação da história.

A segunda parte do slokam aprofunda ainda mais o entendimento. Faz isso fazendo referência à Madukya Upanishad:“o que existe não surge do que existe nem mesmo do que não existe”, o verso afirma, os objetos são aqueles dos quais o fim é o nome [e não somente o início]. Sannāsatassato vāpi nāmāntā viṣayā uta, refere-se à ideia de que, sem causa, se algo existe, não pode se modificar.

Afirmar que o que existe não vem daquilo que não existe nega o engano de acreditarmos que algo pode surgir do nada. O verso relembra que essa afirmação não está de acordo com a nossa experiência. Tudo que ocorre, ainda que não vejamos, tem uma causa. É ilógico um efeito sem causa, não há evidências empíricas de algo que, subitamente, tenha surgido do nada.

Agora, mais profundamente, o verso afirma que o que existe não pode vir do que existe. Nesse ponto o verso quer explorar, para além da relação de causa e efeito - a partir da ideia de transformação que aparentemente ocorre na criação das coisas, por exemplo, se eu tenho barro, posso transformá-lo em pote – a questão da imutabilidade do que existe, do que é real. No clássico exemplo do barro que se transforma em pote, o verso nos convida a pensar que o que está ocorrendo não é a transformação do barro em pote, transformação da causa em efeito. O barro continua sendo barro mesmo depois do pote pronto. A causa continua senso causa no efeito. De onde, então, vem o pote?

O entendimento do conceito de mithya já é pré-requisito aqui. A questão não é afirmar que o efeito é aparente. Pode-se analisar isso empiricamente: o barro não se transformou “realmente” em pote. O ensinamento é que a realidade é una, não se altera, nem se divide. Esse movimento de causa e efeito não é possível para o que é “sat”. Se algo vem de algo e se transforma, se o que é real vem de algo que também é real, isso equivale a dizer que a realidade não é absoluta.Não pode haver espaço entre duas coisas que existe e, por isso, sat, é, por princípio, imóvel.

Assim, o verso afirma que os objetos são aqueles cujo o fim é o nome. Aqui o autor faz referência à ideia bem explorada no universo de Vedanta de que o objeto passa a existir depois que se dá um nome a ele. Uma forma, se nos é dito que é algo, criamos um conceito e ela passa a existir, tal como a árvore e o pote.Já reconhecendo a realidade relativa do objeto, o slokam afirma que o objeto passa a existir a partir do momento que eu dou realidade a ele, e deixa de existir, é o “fim” dele, quando eu reconheço que ele só existe quando dou um nome a ele. Afirmar que a coisa existe porque lhe foi dado um nome, apela, então, à percepção da não realidade dos objetos e à imutabilidade do Ser, sat. Assim, sat, é aquilo cuja grandeza é indestrutível, indescritível, mas ainda assim, passível de ser cognitivamente apontada para liberar o homem do fardo da história, dando-lhe liberdade para viver sua história.

Referências
Alina Silva Sousa de Miranda é professora adjunta da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Campus São Bernardo. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo – USP (2013). Coordenadora do grupo de pesquisa “Hístor: cultura e epistemologia” dedicado, entre outros temas, ao estudo da cultura hindu/védica. Estuda Vedanta, sânscrito e mantra tradicionalmente no Instituto Vishva Vidya desde 2016. Para a confecção do artigo, agradecimentos ao Prof. Victor Mattos, professor de sânscrito do Instituto, na tradução do slokam e no seu entendimento. Agradecimentos ao Prof. Jonas Masetti, também conhecido como Vishvatatha, que gentilmente cedeu sua composição poética em forma de stotrampara servir de fonte em nosso estudo a respeito do conceito de realidade, sat, da tradição védica. E-Mail: alinaslz@gmail.com

ARIÉS, Philippe. O tempo da história. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
GUÉNON, R. Introdução geral ao estudo das doutrinas hindus. São Paulo: Instituto René Guénon de Estudos Tradicionais, IRGET, Editora e Distribuidora, 2015.
GUHA, Ranajit. Historyatthelimitof world-history. New York: Columbia University Press, 2002.
SHANKARA. Tattvabodhah: o conhecimento da verdade. Tradução e comentários da Profa. Glória Arieira. 2º edição revista e ampliada. Rio de Janeiro, Editora VidyaMandir, 2016.
SMITH, Wolfgang. A sabedoria da antiga cosmologia. Trad. Adriel Teixeira, Bruno Geraidine e Cristiano Gomes. Campinas, SP: Vide Editorial, 2017.

9 comentários:

  1. Boa tarde professora, parabéns por seu trabalho. O título me chamou atenção porque eu não conhecia o assunto, a importância dos cânticos para a cultura e história desses povos, os ensinamentos trazidos nesses cânticos, pois bem como superar as dificuldades para estudar e entender sobre as tradições indianas? Desculpa minha falta de conhecimento, mas o que percebe-se que nos estudos sobre civilizações antigas priorizam algumas civilizações e outras há dificuldades para estudar, ensinar sobre esses civilizações, como pode-se quebrar essas barreiras e oportunizar aos estudantes o conhecimento de outras civilizações, como a indiana e suas tradições?
    Beatriz Oliveira Fontenele

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    1. Olá Beatriz, boa questão.
      1) Acho que há um esforço coletivo para valorizar esses estudos e uma disposição para ampliar a variedade de olhares e fontes entre os vários orientes. Se há maior ênfase, no momento, em algum ponto, penso que muito disso se deve à questão da documentação e do acesso mesmo (às vezes desconhecimento), não por identificar qualquer importância desmedida a um e outro. Já estamos vindo desse equívoco com o privilégio dos estudos greco-romanos e europeus.
      2) Infelizmente, porém, no território da História enquanto disciplina, o diálogo com a arqueologia, com os estudos de arte e visualidade e com os estudos linguísticos são ainda muito limitados e muitas vezes ficam no âmbito teórico - pesca-se o debate geral entre eles, mas o trabalho é com fontes (escritas) na leitura à contrapelo, como bem orientou o Ginzburg. A antropologia nos convidou a esse olhar sobre outras civilizações, mas em termos metodológicos o avanço é tanto mais frágil quando mais recuamos no tempo.
      3) Nos estudos da Índia, o período colonial português é mais acessível (e só recentemente com a digitalização de documentos) e mesmo para ele ainda há muita demanda de investimento de pesquisa. Para o estudo da Índia Antiga (que inclui os cânticos) que é meu foco de pesquisa atual, acho que podemos minimizar inicialmente com dois esforços:
      a) avançar no diálogo com a Filosofia (pós-Annales temos muitas ressalvas com essa área de conhecimento pelo hegelianismo indiscriminado aplicado desavisadamente a tudo e todos);
      b) com o estudo da língua, no caso da Índia antiga e textos védicos, o estudo do sânscrito, para se ter acesso aos originais. Podemos estimular os alunos onde essa realidade existe (cursos de Letras que tenham esse enfoque) ou propor cursos alternativos para alfabetização (alguns gratuitos e virtuais) e posteriormente avanço na gramática, pois sem a leitura das fontes no original é realmente um desserviço o estudo desses textos. Há quem estude Índia antiga via tradução do sânscrito para o inglês, o que é bastante problemático e limitado.
      No meu caso, tomei o caminho de aprender a língua sânscrita e me voltar aos textos antigos indianos via método tradicional que hoje é muito acessível a todos nós brasileiros – em português mesmo, mas em inglês também - dada a possibilidade da internet. E acho que esse é um caminho muito válido para nos colocarmos para compreender a alteridade e a nós mesmos. Creio que fazendo isso, já estamos avançando muito. Exige esforço, mas qual caminho de pesquisa não o exige? É muito real essa possibilidade e quando eu escolhi escrever um texto sobre isso, quis também apresentar a realidade desses estudos para todos nós. Há uma conexão desses estudos com a nossa vida, não apenas via passado/História. A Índia Antiga é mais atual do que se pode imaginar.

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    2. Obrigada professora, o texto e sua explicação instigou minha curiosidade, deve ser muito interessante aprender uma língua, para estudar os escritos de uma civilização distintas da nossa.

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  2. Bom dia professora! Gostaria de perguntar mais sobre como se da esse processo de perpetuação da oralidade, você destacou sobre a relação aluno X professor (e também sobre a importância de saber e de querer ouvir/aprender), e acabei por me perguntar se aqueles que assumem o papel de professores seriam os sacerdotes brâmanes nas mediações dos templos, ou se o estudo dos vedas ocorre também em salas de aula? Até que ponto nos é permitido dizer que a perpetuação da tradição oral ocorreu por influência da tradição védica/religiosa? Achei o texto muito interessante, já tinha ouvido falar brevemente sobre o sânscrito e sempre tive curiosidade de saber um pouco mais sobre o mesmo, pude sanar um pouco da minha curiosidade e conhecer um pouco mais dessa tradição tão rica. Muito obrigada.

    Isabela de Barros Pletsch.

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    1. Olá Isabela! Fico feliz que meu texto tenha contribuído para você de alguma forma. Sobre suas perguntas, vou tentar resumir em tópicos para responder abaixo as três: como se perpetua a oralidade, quem são os professores (se são sacerdotes brâmanes nas mediações dos templos, ou se o estudo dos vedas ocorre também em salas de aula) e até que ponto nos é permitido dizer que a perpetuação da tradição oral ocorreu por influência da tradição védica/religiosa.

      1. A Índia não tem como um todo um ensino centralizado e formalizado como o nosso, em muitas partes o que ainda existe é o regime de gurukulam, ensino tradicional no qual a pessoa convive com o professor (porque a aprendizagem não está desconectada da vida). Em se tratando do estudo dos Vedas, isso não se faz nas escolas que existem. Os Vedas não são matéria de estudo para crianças, para isso existem as puranas e outras histórias da tradição védica que muito comuns na Índia. Nas universidades, porém, nos departamentos de filosofia/Letras, muitas vezes em nível de pós-graduação, há o estudo acadêmico dos Vedas.

      2. Paralelo ao estudo acadêmico dos textos védicos, na Índia, o processo de tradição oral é vivo e forte ainda hoje - ele é milenar, é anterior ao estudo acadêmico, naturalmente; é entendido que o conhecimento dos Vedas só pode ser passado de uma pessoa para outra, num relacionamento entre professor e aluno – o termo é sampradaya, tradição/linhagem de professores. Isso vem ocorrendo há milhares de anos e não pode estar associado à ideia de brâmanes do templo, porque é uma fantasia essa associação de que o conhecimento é religioso e que para obtê-lo é preciso ser um renunciante. Os Vedas tratam na natureza humanas e a Bhagavadgita, que tem a qualidade de uma Upanishad, é um estudo sobre a vida real e sempre muito atual.

      3. Nessa ideia de professor e tradição oral, entre vários termos que existem, vou utilizar aqui nessa resposta sadho, shrotrya e brahmanistha, porque é preciso diferenciar os tipos para efeito didático (na tentativa de resumir aqui para você a ideia de que existem vários tipos de mestres, de professores e têm diferenças entre eles no processo de estudo via oralidade).

      4. Um sadho é uma figura inspiracional, cujo estilo de vida reflete nas demais e por isso elas são chamadas e respeitadas como mestres e têm seus discípulos. Costumam, por sua conduta, por sua bondade, caridade, ajudar as pessoas a crescerem emocionalmente. Ou por serem renunciantes, inspiram ao desapego material. Apesar de ensinarem, às vezes falarem ao público, em termos mais formais de estudo, não necessariamente passaram pelo estudo dos Vedas.

      5. Para aqueles que se expõem ao processo de estudo dos Vedas pelo método de ensino tradicional com um professor, existe o termo shrotrya (shrotra significa ouvido), isso diz respeito à ideia de tradição oral. O estudo é tradicional quando a pessoa estuda com um shrotrya, tornando-se ela mesma, após os estudos, um também.

      6. Ser shrotrya é a qualificação mais fundamental de um professor da tradição védica (é um mestre também, mas fundamentalmente um professor). Uma vez que ele seja um professor tradicional e passou pelo método, ele pode repetir o ensino. Shrotrya são difíceis de achar, leva uma vida aprender e passar pelas disciplinas (sânscrito, puja cantos, etc.), mas não é impossível. Hoje, essa tradição está disponível mesmo em português – há professores que passaram pelo método tanto no Brasil como em Portugal e muitos deles dão aula em formato tradicional, o que não significa dizer convencional. A tradição védica, a despeito do que afirmam, não é uma tradição fechada, uma seita religiosa. O sânscrito, inclusive, é uma disciplina, não um pré-requisito para entender a mensagem dos Vedas que trata da humanidade, da natureza humana. Querendo profundar, porém, no assunto, ele (o sânscrito) é indispensável.

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    2. 7. De qualquer forma, porém, existe o termo brahmanistha, que também não exige estar no templo, nem mesmo na Índia, mas é o termo para especificar a ideia de que a pessoa tem a visão (darśana) que os Vedas guardam e sabe percorrer o caminho até ela. O papel das disciplinas aqui é fundamental, para a mente fazer o exercício de refazer o caminho e fazer o conhecimento ficar nistha, estabelecido. Nistha também se refere a um estilo de vida, onde o conhecimento é a sua prioridade – conhecimento sobre a natureza humana que os Vedas guardam, e a pessoa pode fazer isso trabalhando, criando um filho, tendo família, etc., essa ideia de renunciante é uma fantasia. Os primeiros rishis (que tinham a visão, é um outro termo) eram todos casados, inclusive, está em alguns textos o gesto deles ensinarem para esposa e filhos. É posterior a tradição de swamis renunciantes. Aqui a ideia do que é ser um renunciante deve ser explorada nessa tradição, porque conflita com a nossa noção da tradição católica.
      8. Vale lembrar que o termo indiano para filosofia é darśana (literalmente ver), que significa ‘crítica subsequente à visão’ (anvīkṣā). Uma classificação um pouco apropriada para o pensamento filosófico indiano é distinguir as diferentes tradições da filosofia indiana como iistika (ortodoxas, significando os adeptos da tradição védica) e os niistika (heterodoxos, denunciando a autoridade dos Vedas: niistika Veda nindakah). Porém, essa palavra ortodoxa não deve ser entendida como no senso comum ocidental, como se se tratasse de uma dureza, uma pressão em torno do modo de vida buscando gerar uma respeitabilidade que flerta com a ideia de perfeição/religião. O Veda trata do ser humano e quem quer que se exponha ao método (pramanam) e tenha essa qualificação mental, pode adquirir a visão, o entendimento dos textos. E esse preparo da mente não é religioso, ortodoxo, ao contrário, exige flexibilidade, humildade de quem se coloca a escutar o Veda; não é uma questão de ortodoxia, é uma questão de liberdade. Se eu puder simplificar, ortodoxia não tem a ver com a maneira de passar o ensino – que podem ser bem modernas e adaptáveis às diferentes sociedades -, mas com a necessidade de ter ou atribuir valor à visão. Orto significa correto, dóxa, opinião. Então, essa questão de ser ortodoxo é ter a opinião correta, a visão correta. Estou simplificando a coisa para me fazer entender por escrito.

      9. É possível que um shrotrya, mesmo tendo passado pelo processo de ensino tradicional, não tenha a visão. A tradição védica afirma que para ter essa visão basta ter a qualificação mental e o coração no lugar, ou seja, honestidade e dharma (agir corretamente). Ainda assim, é confiável estudar com ele, porque o mais importante é ter sido exposto ao método de ensino tradicional.

      10. Nem na Índia as pessoas podem estar preparadas com essa mente qualificada, porque não é uma questão de hinduísmo, nem de ser indiano. Quando um shrotrya tem dárshana, ele é chamado de brahmanistha.

      11. Apesar de não ser posse dos indianos, quem de fato guardou esse conhecimento espiritual foram eles, em locais conhecidos como ashrams, e por isso eles devem ser respeitados e são a fonte de estudo para aqueles que querem se aproximar dessa questão. É uma aproximação que deve ser feita com muito respeito e reverência. (Há um ditado que afirma que o segredo do velho não se pede com dinheiro, mas com boas maneiras. Esse é um ditado africano, mas poderia bem ser aplicado à Índia e à tradição oral como um todo)

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    3. Muitíssimo obrigada pela resposta! São conceitos muito interessantes, e é observável a grande riqueza cultural presente nessa tradição, tenho tido interesse pelo oriente a algum tempo e a Índia parece ser um ótimo tema de estudo, quem sabe no futuro não o torno tema de minhas pesquisas também. Parabéns pelo ótimo trabalho.

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  3. Olá professora Alina Miranda! parabéns pelo artigo! Minha dúvida esta na seguinte afirmação: "O papel da Índia na Ásia pode ser comparável ao da Grécia na Europa". Gostaria de saber se a Índia nesta afirmação, seria uma especie de "berço" da "civilização Asiática" com sua instituições e tradições políticas e religiosas disseminando-se pela Ásia e "inspirando" em parte, a formação política, religiosa e social de grande parte do continente asiático?

    MARIANNY CIRILO BORGES

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    1. Olá Marianny,
      Usei a afirmação mais voltada para es efeitos que para a ideia de raízes, origens, berço. Em decorrência do papel que o conhecimento/pensamento indiano tem sobre as demais civilizações do continente asiático como um todo e fora dele, a Índia é um gigante. É menos sociológico/político e mais epistemológico/ontológico. Há muitas leituras hoje que apresentam, inclusive, o papel que a Índia teve sobre a própria Grécia. Há uma tese publicada em pdf que trata isso, mas tem muitos livros também, chamada The untold story about Greek rational thought: Buddhist and other indian rationalist Influences on sophist rhetoric, de Basnagoda Rahula. É uma tese publicada em 2000, quase 20 anos atrás. Infelizmente nossa tradição de leitura ainda é somente sobre o milagre grego, daí também a importância de eventos como esse, que tentam dar visibilidade para os vários orientes.

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