Jeane Carla Oliveira de Melo e Francisca Márcia Costa de Souza

ENSINAR RESISTÊNCIAS E A LUTA CONTRA A CULTURA DO ESTUPRO: O USO DO DOCUMENTÁRIO “FILHA DA ÍNDIA” NA SALA DE AULA

Introdução
Esse texto nasce do pensamento feminista e do desejo militante pela promoção de relações mais igualitárias entre homens e mulheres e porque acreditamos que a sala de aula, dentre muitas atribuições, tarefas e missões, é um lugar de entusiasmo político,possui um potencial apelo educativo em sua tarefa de provocar a rebeldia crítica no que se refere ao exercício de uma reflexão engajada e aprendizagem libertadora acerca da desconstrução do machismo e a compreensão das estruturas patriarcais existentes nas sociedades ocidentais e orientais. A sala de aula como espaço de desejo precisa cruzar essas fronteiras estabelecidas e recusar a produção do conhecimento como um esquema absoluto e fixo.  Neste aspecto, acreditamos também em um ensino de História que dialogue epistemologicamente em termos de teoria e metodologia com os Direitos Humanos na construção de uma ciência democrática, emancipatória e comprometida com as questões sociais e urgentes do tempo histórico em que as culturas estão inseridas. Nesse contexto atravessado por tempos sombrios, embora se tenha dito em várias frentes, o machismo não é contrário ao feminismo, no machismo ronda um espectro destrutivo alimentado historicamente pelo desejo permanente de violência, subordinação e opressão às mulheres. O machismo é um ideário de supremacia dos homens, um vigoroso sistema de poder entranhado nas sociedades, cujo aperfeiçoamento das estratégias de controle mantem os privilégios masculinos, para que suas riquezas e espaços políticos se concentrem, não importando quantas vidas são sacrificadas e sonhos são destruídos pelo caminho. Nesse sentido, o estupro coletivo é uma prática de violação do corpo feminino. Em muitos aspectos tem funcionado como corretivo e tem encarnado aspecto punitivo as supostas ‘infrações’ cometidas por mulheres aos códigos patriarcais. Basicamente, o documentário “ filha da Índia” (2014) demonstra isso. Ele escancarou toda uma vasta rede de misoginia representada pelos estupradores e figuras do sistema judiciário da Índia, evidenciado a fragilidade dos direitos das mulheres, porque as enxergavam como ‘naturalmente’ inferiores, submissas e objetificadas. Por fim, é preciso esclarecer que a cultura do estupro existe quando a mulher é constantemente desumanizada e a sociedade é brutalmente desigual, onde impera a sensação de medo permanente. A cultura do estupro explica, por exemplo, a culpabilização da vítima de estupro, duvidando da veracidade da denúncia, quando se tenta justificar o crime pelas atitudes, vestimentas ou hábitos da mulher.

A filha da Índia: uma proposta do uso do documentário no ensino de História e o engajamento político na luta pelo fim da cultura de estupro
Dito isto, trazemos como sugestão o trabalho pedagógico em sala de aula com o documentário “Filha da Índia”, produzido no ano de 2014 pela documentarista inglesa e ativista de direitos humanos Leslie Udwin. O documentário buscou retratar um emblemático caso ocorrido em dezembro de 2012, quando a recém-formada médica Jyoti Singh foi barbaramente violentada e estuprada por seis homens dentro de um ônibus, ao voltar do cinema com um amigo, em Nova Délhi. Após duas semanas de internação e em um estado clínico crítico, a jovem veio a falecer, desencadeando uma forte onda de protestos e levantes feministas em várias regiões da Índia, exigindo o fim da cultura de estupro que integra fortemente as relações patriarcais daquele país.

Figura 1: Cena dos protestos desencadeados na Índia por conta do caso. Disponível em <https://www.vice.com/pt_br/article/pgexv9/a-filha-da-india-o-filme-sobre-o-estupro-coletivo-que-chocou-o-mundo-chega-ao-brasil>Acesso em 07|09|2018. 

A documentarista (que fora também vítima de abuso sexual aos 18 anos) entrevistou os próprios estupradores, as suas famílias, as autoridades e advogados indianos envolvidos no caso, os ativistas de direitos humanos, assim como deu voz também à família de Jyoti Singh. É possível perceber que as intencionalidades do documentário giram em torno de tentar entender como a cultura do estupro e a violência contra as mulheres são produzidas no seio da cultura patriarcal indiana. Deste modo, é dada especial ênfase na forma com que as mulheres são vistas por essa sociedade.A partir da fala de alguns entrevistados, é possível perceber a reificação de códigos sexistas: para eles,as mulheres não devem sair à noite porque são “indefesas e frágeis”, devendo ser protegidas por um homem e que, ao infligirem essas “regras”, elas se tornam “responsáveis pela violência que venham a sofrer”. Isso fica bem claro quando um dos estupradores, permanecendo sempre fria durante a entrevista, disse "Uma garota decente não sairia por aí às 21h". Assim, é bastante nítido os mecanismos culturais daquele país em culpabilizar as vítimas pelas violências e abusos. Vale ressaltar que o documentário foi censurado na Índia pelas autoridades políticas, que não concordaram com a leitura e representação do país feita pela documentarista inglesa.

Para além do documentário “ Filha da Índia”, o caso de Jyoti Singh se tornou um libelo em prol do fim da cultura de estupro mundo afora e fez com que a imensa repercussão do estupro coletivo levasse ao questionamento do lugar da mulher no sistema de castas na Índia e como as condições de pobreza também contribuem para produzirem e reproduzirem a violência de gênero – os assassinos de Jyoti Singh eram moradores de favelas insalubres em Nova Delhi, possuíam baixo grau de instrução escolar e ocupavam empregos precários. Isto é, questões ligadas a classe também ajudam a entender o quanto a violência contra a mulher é complexa, estrutural e perpassada também por nuances econômicas e políticas. Ter em conta que a cultura do estupro não existe sozinha e sim amparada em redes maiores de subordinação e dominação masculina moldada por variáveis econômicas é uma das teses defendidas pela ativista indiana Kavita Krishnan (2015, p.265) que pensa que a política, a economia e ideologia de castas influenciam diretamente os direitos das mulheres na Índia:

“O que precisamos questionar não é “Por que a cultura indiana é tão brutal com as mulheres e por que a Índia defende o estupro e ‘assassinatos de honra’”, mas sim “para os interesses de quem, e por meio de quais processos, uma ‘cultura indiana’ está sendo produzida, uma cultura que, simultaneamente, culpa as mulheres pelos estupros, e justifica o controle e a negação da autonomia das mulheres em nome da proteção contra o estupro?” Por que, na Índia (e também no resto do mundo), estamos observando pronunciamentos em voz alta de responsabilização das vítimas e da cultura do estupro por parte de políticos influentes? O capitalismo precisa inserir as mulheres na força de trabalho como mão de obra barata, mal remunerada, e também precisa do trabalho doméstico não remunerado das mulheres para arcar com o ônus da reprodução social (ter filhos, reabastecer diariamente a força de trabalho, dando alimentos, cuidados e conforto psicológico para o trabalhador esgotado, e cuidar do passado e futuro da força de trabalho - crianças e idosos)”.

Deste modo, Kavita Krishnan (2015) chama atenção para a forma como a mulher é subordinada na Índia, que também está ancorada em um projeto reforçado pela atual modernidade capitalista que visa disciplinar/controlar o trabalho das mulheres em uma economia neoliberal, e não como um mero vestígio ou sintoma de uma cultura “atrasada”.Portanto, há muitos determinantes responsáveis pela produção das desigualdades sociais, e, de acordo com a pesquisadora, a manutenção do lugar de subordinação das mulheres, sobretudo as pobres na Índia é útil ao capital.

No Brasil, tais questões também encontram uma triste correspondência. Segundo dados contidos no Atlas da Violência de 2018, ocorreram no país 22.198 mil casos de estupro registrados em todo o país no ano de 2016. Mais da metade cometidos contra crianças de até 13 anos.As adolescentes de 14 a 17 são 17% das vítimas e 32,1% eram maiores de idade. Cabe assinalar que o estupro é um crime bastante subnotificado, o que tornam esses números ainda maiores. A leitura social desse alarmante índice de violências cometidas contra crianças e mulheres aponta para a existência de uma forte e protegida cultura do estupro em nossa sociedade, fazendo com que meninas sejam o principal alvo dessa barbárie praticada em sua imensa maioria por homens, os “filhos saudáveis do patriarcado”. O enfrentamento à violência contra a mulher ocorre quando os crimes são denunciados, quando se amplia a rede de apoio à mulher, com o aplicação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), com as políticas de prevenção à violência contra a mulher e o acesso democrático à justiça.

Um roteiro crítico de análise do audiovisual: pensando historicidades, contextos e culturas tradicionais no tempo presente
Por isto, fortalecer a igualdade entre os sexos e construir uma cultura não-violenta baseada no diálogo e na justiça é dever de toda a sociedade. A educação, nesse sentido é vista como um meio propício para o desenvolvimento de posturas condizentes com uma civilidade humanista e que seja crítica dos processos de desigualdades e contradições sociais. O ensino de História, assim como as outras disciplinas de humanidades favorece a abordagem sobre Direitos Humanos ao pensarem conceitos como cultura, sociedade, política, direitos, relações de gênero, sexualidade dentre outras.
No entanto, o uso do audiovisual na aula de História requer uma atenção metodológica especial.Na realidade, enquanto experiência social, o uso crítico do cinema exige atenção aos códigos e linguagens, como analisar a trilha sonora e música como expressão de sentimentos, compreender a relação entre o uso da câmera e recortes de cena. Nesse sentido, é uma atividade muito bem planejada e acompanhada pelo professor (NAPOLITANO, 2011). Como mundos imaginários, o audiovisual é construído a partir de linguagens e técnicas que são a estrutura comunicativa e estética, que determinam o sentido da história contada. Segundo Fernão Ramos (2008), o documentário faz asserções ao mundo histórico, para tanto utiliza estilos diversos para construir a narrativa.

O documentário se mostra para nós como uma fonte histórica complexa que demanda questionamentos acerca do contexto histórico em que foi produzido, diante de quais interesses e do lugar social (CERTEAU, 2007) a qual pertencem os sujeitos envolvidos com a direção/produção do audiovisual. Em sua abordagem como fonte história, o documentário é problematizado a partir de questões com base no roteiro, no argumento, nos personagens, nos valores e ideologias que atravessam a obra (NAPOLITANO, 2011).Em um esforço pedagógico de alinhavar palavra, som, movimento e a imagem, tomando o documentário como construção e montagem. Portanto, é importante levar em consideração que o documentário deve ser lido enquanto representação do social a partir de um ponto de vista atravessado por escolhas políticas, produções de sentidos e subjetividades.Por isso, é pertinente pensar “O que a imagem reflete? Ela é expressão da realidade ou é uma representação? Qual o grau possível de manipulação da imagem?” (KORNIS, 1992, p. 1). Esse tipo de exercício aprimora o olhar e o desenvolvimento do senso crítico de alunas e alunos. Por isso, a leitura do documentário precisa ser ambiciosa e direcionada, propor relações entre temáticas e linguagem, levar em consideração uma reflexão prévia sobre o tema abordado no documentário, com discussão de conceitos e usos de outras linguagens com o intuito de tornar a aprendizagem mais complexa e significativa.

Portanto, sugerimos que o trabalho pedagógico com o documentário “Filha da Índia” seja acompanhado por esses questionamentos e indagações acima mencionadas acerca dos processos envolvidos na produção do documentário (SALES, 2009) e possa servir como ponto de partida para problematizar as relações de gênero na sociedade indiana e brasileira, em busca de uma reflexão crítica e engajada acerca da responsabilização das estruturas e dos sujeitos pela construção e permanência da cultura do estupro e como a existência dessas práticas vulnerabiliza a vida de crianças e mulheres ao redor do mundo.

Deste modo, recomendamos que a exibição do documentário possa ser subsidiado por três momentos: o primeiro, de aulas e /ou palestras em que sejam tematizados os conteúdos referentes à sociedade indiana atual e seu sistema de castas, de modo a propiciar aos alunos e alunas um maior conhecimento do tema e das possibilidades de contextualização da narrativa. Para tanto,indicamos a leitura do texto “Cultura do estupro e machismo na Índia em globalização” da ativista Kavita Krishnan (2015). O segundo momento, o da exibição seguido do debate coletivo, sugerimos que sejam realizadas oralmente o registro das impressões após a exibição, buscando ouvir as reações e opiniões a respeito do documentário e fomentando uma discussão crítica acerca do modo como a cultura do estupro é um dos braços mais violentos de uma sociedade patriarcal.

No terceiro e último momento, solicitar aos alunos e alunas que produzam uma resenha contendo a ficha técnica do documentário, uma breve pesquisa sobre a diretora e o contexto em que a obra foi produzida, o registro das observações em relação a narrativa assistida, a atribuição aos significados do título do documentário, sugestões de como combater a cultura de estupro em nosso meio social, bem como a organização da análise e das conclusões individuais. A culminância da atividade poderá ocorrer em datas políticas e bastante pedagógicas, como o Dia Internacional da Mulher (8 de março) ou o Dia Internacional dos Direitos Humanos (10 de dezembro), ou na data que se adequar melhor de acordo com o planejamento docente. A produção das resenhas individuais poderá também ser publicadas em um blog ou integrarem um livro (em formato impresso ou e-book) que possa circular pela comunidade escolar e alcançar uma quantidade maior de interlocutores, promovendo assim o registro permanente dessa atividade.

Conclusão
De acordo com Fonseca (2017),  59% dos homens acreditam que suas mulheres devam ser proibidas de andar na rua depois das 22h. O que demonstra uma cultura que subordinada mulheres aos homens. Ao propor a análise da película mediante o exercício crítico da visão da autora, da perspectiva dos entrevistados e do conteúdo das falas e seleção de imagens, podemos criar um espaço que favoreça abordagem do documentário como processo de construção da realidade social indiana. Nesse caminho, o audiovisual em sala de aula cumpre o papel de transformar a sensibilidade e os modos de construir o imaginário social. Além disso, a relação documentário e aula é complexa ao mesmo tempo muito rica e atraente. Ele precisa ser utilizado a favor da relação ensino-aprendizagem, pois é capaz de tocar em temas sensíveis de maneira competente e exigente, como são os casos de violência de gênero e cultura de estupro.

Referências
Jeane Carla Oliveira de Melo é mestre em Cultura e Sociedade/UFMA e professora de História do IFMA Campus Alcântara. Email: jeane_melo@ifma.edu.br
Francisca Márcia Costa de Souza é mestre em História do Brasil/UFPI e professora de História do IFMA Campus Buriticupu. Email: francisca.souza@ifma.edu.br

ATLAS DA VIOLÊNCIA 2018. Disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf  Acesso em 20|08|2018.
BERTH, Joice. Filha da Índia e a cultura do estupro: porque os homens ainda são ensinados a estuprar?Disponível em <http://justificando.cartacapital.com.br/2016/03/08/filha-da-india-e-a-cultura-do-estupro-porque-os-homens-ainda-sao-ensinados-a-estuprar/> Acesso em 08|09|2018.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
FONSECA, Fernanda Cardoso. A questão da mulher na Índia: debate acerca da violência de gênero no país. Disponível em https://pucminasconjuntura.wordpress.com/2017/10/22/a-questao-da-mulher-na-india-debate-acerca-da-violencia-de-genero-no-pais/Acesso em 07|09|2018.
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. 2. Ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.
KORNIS, Mônica Almeida. História e cinema: um debate metodológico. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro. Vo. 05. N. 10, 1992, p. 237-250.
KRISHNAN, Kavita. Cultura do estupro e machismo na Índia em globalização. In: SUR 22 - v.12 n.22,263 – 267, 2015.
NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. 5. Ed. São Paulo: Contexto, 2011.
RAMOS, Fernão Pessoa. O que é Documentário? Disponível em <http://www.bocc.ubi.pt/pag/pessoa-fernao-ramos-o-que-documentario.pdf> Acesso 08|09|2018.
SAFFIOTI, Heleieth B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos Pagu, n. 16, p. 115-136, 2001.
SALES, Eric de. História e documentários: Reflexões para o uso em sala de aula. In: Revista Solta a Voz, v. 20, n. 2, 2009.

27 comentários:

  1. Oi Jeane. Os movimentos feministas e suas militâncias, conforme você aponta no texto, devem preencher todos os espaços sociais, como o escolar, na busca por uma sociedade mais justa e igualitária de direitos entre todos. No entanto, existem resistências por parte inclusive das mulheres que acabam por concordar pelos mesmos argumentos de cunho patriarcal, culpabilizando as mulheres pelo estupro (cultura). A partir disso, questiono: o que faz um grupo significativo de mulheres reproduzirem esse discurso machista? (Incluindo apoiar candidatos a cargos políticos que defendem essa perspectiva nos seus discursos). Obrigado! Abraço!

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    1. Obrigada pela pergunta, Maicon. É uma indagação intrigante - do por que algumas mulheres reproduzirem discursos machistas. Penso que a resposta reside precisamente na forma como fomos historicamente socializadas para a submissão. Não é fácil romper com os próprios grilhões e construir uma consciência baseada na ideia de luta contra esse lugar de "segundo sexo" ao qual nos relegaram. Essa socialização traz em si germes de estocolmização e também um certo fetiche pelo assujeitamento - algo partilhado por outros grupos que apoiam seus algozes, como negros que são contra o movimento negro e trabalhadores que defendem seus patrões. Como se as minorias se livrassem de serem alvos apenas porque andam do lado do atirador. No caso específico das mulheres conservadoras, o feminismo continuará existindo apesar delas e lutando por todas as mulheres. Acredito que também é importante que os homens façam a sua autocrítica em cima dos lugares de poder que ocupam e de como contribuem para a manutenção da opressão. Por isso é urgente que os homens busquem dialogar uns com os outros na tentativa de desconstruir a masculinidade tóxica que tem contaminado violentamente a nossa cultura. De um modo geral, penso que é até mais produtivo que os homens se mobilizem e se preocupem em minar por dentro a toxicidade da cultura masculina do que demonstrarem a preocupação com a resistência das mulheres conservadoras. Acredito que se um homem quer ser aliado do feminismo, ele primeiro examina a si mesmo e depois tenta educar o colega de trabalho, o parente, o filho. O lugar dos homens que queremos no feminismo é esse. Um homem usando do seu poder de diálogo para desconstruir outro homem. Isso é imensamente poderoso! Agora eu que lanço um questionamento: estarão os homens da esquerda dispostos a cederem poder (concreto e simbólico) para equilibrar essa balança de gênero? Forte abraço!

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    2. Oi Jeane. Concordo com os teus argumentos. Independente do posicionamento ideológico, a construção da empatia e a desconstrução de uma prática e mentalidade machista precisa ser feita dentro de um grande processo. Quero crer que será menos penoso. Abraço

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  2. De acordo com a perspectiva historiográfica apresentada no texto, qual o sentido de promover uma cultura, que embora de um ponto de vista histórico seja importante para guarda a memória de um povo, mas por outro lado é um meio utilizado para perpetuar a pratica do estupro feminino? Ate que ponto a cultura se mostra como significativa e humanizada e como desconstruir as praticas do estupro e das formas de poder que tendem a gerar a desigualdade de gênero dentro da sociedade?

    Alessandro Lopes Campelo

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    1. Cultura vem do verno latino colere (cultivar, habitar, cultuar, cuidar, tratar bem, prosperar). Em um primeiro esforço, é preciso pensar cultura no plural. Em segundo, problematizar o que entendemos por cultura. As culturas humanas são múltiplas, diferentes e não são hierarquizáveis. Quando pensamos a cultura do estupro partimos do pressuposto não de sua fixidez, mas dos processos históricos que atravessam a sua construção, o que pressupõe as suas metamorfoses de quando em quando, exatamente para que possa garantir sua sustentação e objetividade para aquela sociedade. Discutir a cultura do estupro significa romper com o falso problema apontado. Significa romper com um padrão fixo, limitador e pré-moldado a que todos querem engavetar a cultura. Partir desse entendimento é interessante para pensarmos a cultura do estupro. No filme, os padrões de masculidade e feminidade foram escancarados. As mulheres nos discursos são desprovidas do direito de ir e vir, de se relacionar, de busca seu próprio destino, de estudar. No documentário, a construção da masculinidade é atravessa pelo discurso de posse, que é alicerçado na ideia de que a cultura é algo posta sem interferência alguma dos donos do poder. Portanto, a agressividade, dominação, a insensibilidade constituem o que se considera ser homem naquela sociedade. Os homens nessa cultura exercem seu poder a partir da opressão e violência contra as mulheres. Naturalizam o desrespeito, a dor e violência como formas autênticas de conceber as mulheres em seu país. Ao chamarmos de cultura do estupro tentamos encaminhar a disputa para dois caminhos. Primeiro, desconstruir o conceito de cultura alicerçado em tradição imutável, naturalizada e mitologicamente perdida nas brumas do tempo. Em segundo, a partir deste conceito, a apontar os elementos de poder econômicos, de exclusão social e indiferença em relação á vida e à educação de meninas e mulheres como algo meticulosamente engendrado para perpetuar os privilégios dos homens em detrimento dos direitos das mulheres, relegadas a condições de eterno natural.

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  3. Olá Jeane, tudo bem?
    Pensando na questão de propor mudanças efetivas na cultura do estupro na qual vivemos e que infelizmente ainda é bem forte em nossa sociedade, essa proposta educacional da qual você fala em seu trabalho tem algum planejamento quanto ao fato de incluir a família e a comunidade de forma mais eficaz, já que grande parte dos pensamentos machistas e da cultura do estupro vem de dentro da família? Porque, dependendo da condição social dos estudantes e de seus familiares, acho difícil que os pais dediquem um tempo para discutir sobre esses temas ou que no mínimo leiam o que os filhos escreveram sobre na escola.
    Além de que para que realmente se tenha uma mudança efetiva, as ações para isso devem ser diárias.

    Não se minha questão ficou confusa, mas se ficou, tento elaborar de outra forma..
    Grata.
    Jienefer Daiane Marek

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    1. Obrigada pela pergunta, Jienefer. De fato, o trabalho de conscientização que visa a desconstrução da cultura do estupro exige uma tarefa educativa bem mais ampla abrangendo um número maior de agentes e formadores. No entanto, penso que já é uma contribuição política e epistemológica bastante significativa que a aula de História possa servir de espaço para abordar esse tema a partir da oferta de elementos teóricos e metodológicos para pensarmos a questão. No caso de ampliar a formação cidadã de um maior número de sujeitos, é necessário concentrar esforços com outras disciplinas e outros profissionais que possam trabalhar em rede, algo que pouco dispomos em nossas condições concretas de trabalho. Reitero que a proposta deste texto é promover uma reflexão sobre como o patriarcado atua em diferentes culturas e como a luta coletiva das mulheres transcende nacionalidades e tem se legitimado através das primaveras feministas ocorridas em várias parte do mundo. Penso que já é algo extremamente poderoso iniciar uma mudança de mentalidade (logo esta que muda tão devagar - como pontuou Fernand Braudel) e dotar os alunos e as alunas de ferramentas para que possam contextualizar o acontecimento histórico, criticar desigualdades e combater injustiças no campo social.

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    2. Exatamente! Eu sou do campo da Arte, e dentro das discussões que temos em sala na faculdade, sempre buscamos refletir sobre essas questões nos diversos campos de estudo, e mais ainda em como podemos levar isso para as escolas, com o propósito de conscientização e, como você mesma disse, munir nossos estudantes de argumentos que os ajudem a combater essas situações de injustiça social.

      Seu trabalho é realmente maravilhoso... Sucesso em suas futuras pesquisas...

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  4. Olá. Seu texto me deu boas ideias. Estou trabalhando com minhas alunas sobre a cultura do estupro e o machismo que nós vivenciamos.Não conheço o documentário, gostei muito de sua proposta. A minha questão é como trabalhar de maneira mais efetiva com os meninos? Claro, o debate, documentário ajudam, mas não tenho conseguido muito em minha realidade. Fiquei muito feliz em ler o texto nesse período de temor, estou com medo de nosso futuro e mudanças negativas na educação.
    Por uma educação libertária e crítica. Obrigada
    Paola Rezende Schettert

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    1. Paola, obrigada pela participação. Em relatos como o seu e na minha própria experiência profissional, vejo que há uma certa resistência por parte dos meninos em se engajarem com o tema relacionado a cultura do estupro. Há um desconforto imenso da parte dele quando abordamos a violência da relação homem-mulher, a naturalização do assédio nos espaços públicos, as práticas violentas oriundas da indústria cultural (pornografia e outras narrativas de subjugação feminina) e afins. Muitos recuam quando percebem que precisarão se responsabilizar ativamente. Penso que essa resistência se dá a medida que eles descobrem que uma sociedade que busca a igualdade de gênero é uma sociedade em que os homens cedem poder e refletem sobre ele. Urge, portanto, atingir o núcleo duro da masculinidade, ainda mais no contexto atual em que as práticas de misoginia, racismo e homofobia têm tomado conta do debate político. Forte abraço!

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    2. Boa noite, Paola.

      Obrigada pela questão.
      Ela é relevante porque temos enfrentado grandes retrocessos em relação às conquistas sociais e políticas para mulheres no Brasil. Especialmente, com a ascensão de representantes dos discursos de ódio ao poder. O que nos faz lembrar de toda misoginia que atravessou o processo de "impeachment" da primeira presidenta do Brasil. Ainda ouço os discursos dos "homens de bem" na Câmara de deputados ao votarem pela admissibilidade do processo. Ficou evidente o lugar que as mulheres ocupam em nossa sociedade para aqueles homens. Naquele espaço de poder, a maioria é homem! O que me faz pensar em nossa representatividade quando as nossas pautas, quando chegam, são tratadas. Neste cenário sombrio, a educação de meninos é um grande desafio e não é realizada separada das ações políticas de inclusão, visibilidade e empoderamento das meninas. O que passa também pela ampliação de direitos para as mulheres no âmbito do trabalho e da educação. Nas escolas, a impressão que tenho é que os problemas que envolvem o estupro coletivo, a violência contra as mulheres é mais uma questão para as mulheres resolverem. Todas as vezes que tentamos perfurar a blindagem dos privilégios masculinos a pretensa superioridade deles é proclamada e justificada à luz do direito, da religião, da cultura... como se tudo isso não fossem construções deles mesmos de modo perpetuarem as relações desiguais de poder. A escola, infelizmente, ainda é um espaço que propõe educação distintas para meninas e educação para meninos. Essa divisão tende enfraquecer a luta pela igualdade de gênero. Um problema que temos enfrentando nas escolas é a gravidez na adolescência. A sexualidade exercida pelos jovens diz muito sobre as condições de vida e educação. Geralmente é exercida com medo, sem empoderamento e conhecimento de ambos os lado. Muitas vezes tem valido a sexualidade exercida pelos homens. Assim, a educação que favoreça o diálogo, a educação voltada para sexualidade e desconstrução de práticas de assédio e violência como algo naturalizados. Além disso, reforçar nos mecanismos que orientam o mundo do trabalho e da justiça a ausência históricas das mulheres como sujeitos de direitos.

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    3. CORREÇÃO DO TRECHO:

      Além disso, DENUNCIAR os mecanismos que justificam, no mundo do trabalho e da justiça, a ausência histórica das mulheres como sujeitos de direitos.

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  8. Oi, Maicon. Obrigada pelo questionamento. O nosso trabalho é problematizar e desconstruir a ideia segunda a qual nós, mulheres, somos responsáveis pelo machismo que reproduzimos. Na realidade, quase tudo que sabemos sobre o que é "ser mulher" vem do patriarcado, através de seus conceitos, valores, categorias, representações nas artes, na forma que o corpo se apresenta para mulheres. Está presente nas capas de revistas, nas notícias de jornais, nos outdoors, nas novelas...a luta passa, inclusive, pela ocupação desses espaços de fala e poder. As mulheres não criaram o machismo, a ideia que mulher não pode ser companheira de outra mulher, a perspectiva que somos competitivas entre nós...não são ideias nossas. O patriarcado tem dito quase tudo o que sabemos sobre nós mesmas. Portanto, outra bandeira de luta é justamente desmistificar que somos responsáveis pelo machismo que reproduzimos. Se nos evidenciam como competitivas entre si, esta tem sido uma maneira hegemônica de construir as sociabilidades e as relações politicas entre mulheres. Com o impeachment da presidenta Dilma...a volta do primeiro-damismo...e a inauguração de 'Escolas de Princesas 'esse processo de desconstrução ainda é mais árduo

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  10. Prezadas Jeane e Francisca,
    em minhas aulas gosto de trabalhar com a comparação entre o período estudado e os dias atuais como forma de mostrar as transformações e as permanências.
    Entretanto, em tempos de 'Escola Sem Partido', há o receio de trabalhar temas mais atuais, mesmo que sejam fatos.
    Uma tentativa de "burlar" o ESP seria pedir que os próprios alunos trouxessem reportagens atuais que tratem de temas sobre os quais estão estudando (ex: o tema estudado é a II Guerra Mundial e eu gostaria de falar sobre intolerância. Sendo assim, pediria aos alunos que pesquisassem para saber se atualmente acontecem casos de intolerância e, caso encontrassem reportagens desses casos, trouxessem para dividir com os colegas). No caso do texto aqui em questão, poderia pedir aos alunos que buscassem saber se atualmente existem casos de estupro corretivo e em caso positivo, trouxessem para a sala de aula. Assim, seriam os próprios alunos chegando a conclusão de que o machismo é uma permanência na história, ao invés da professora falar isso.
    Já vi pais alegando que a exibição de documentários em sala de aula seria doutrinação pois cada documentário possui um ponto de vista. Minhas perguntas então são: o que fazer para trabalhar com documentários sem ser acusada de doutrinação ideológica além de deixar explícito que estes serão trabalhados através de questionamentos (já que nenhuma fonte deve ser tida como verdade absoluta) e que argumentos utilizar para demonstrar a esses (ir)responsáveis que é importante que os alunos conheçam pontos de vista diferentes dos deles e aprendam o que significa respeito?
    Grata,
    Fabiana Costa Biscácio.

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    2. Fabiana, agradeço a sua reflexão oportuna. Sim, é provável que a mera menção aos direitos humanos já provoque a ira de pais e alunos conservadores, contudo, devemos sempre apelar para as saídas legais que a própria Constituição e a Lei de Diretrizes Bases da Educação preconizam que é um direito o acesso a uma educação voltada para uma perspectiva cidadã e democrática. E conhecer o passado de uma forma honesta e atenta às fontes é um direito! Temos também as leis 10.639 e 11.645 que nos colocam a responsabilidade de abordar a história e cultura das minorias - tão essenciais para a construção desse país. Lembra do tema do ENEM de 2015? A discussão sobre a persistência da violência contra a mulher? Como construir uma redação sem antes ter se apropriado de uma discussão crítica? À parte do pensamento retrógrado, marchamos!

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  11. Jeane, não tenho questionamentos, apenas agradecimentos, estamos passando por um período trevoso, em que existem reais possibilidades de retrocessos nas conquistas de direitos humanos(exatamente após 30 anos de Constituição Cidadã!), ler teu artigo me serviu de conforto, pois me emociona saber que a academia tem feito produções que vão justamente contra essa onda retrograda, parabéns! Continue assim, sempre!
    Agradecida,
    Mariana Neto Bernucci

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    1. Mariana, estamos juntas e militantes por uma educação transformadora e emancipatória. E nestes tempos sombrios que se avizinham, vale destacar uma frase de Simone de Beauvoir: "Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.” Muita força, resiliência e tenacidade pra gente!

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  12. Caras Jeane e Francisca,
    Primeiramente as parabenizo pelo texto e pelo conteúdo, o qual precisa cada vez mais ser problematizado, questionado e tocado... Partindo da conclusão do texto de inserir este conteúdo na práxis pedagógica, gostaria de saber quais mecanismos podem ser usando para tais, tendo em vista que o Brasil vem enfrentando uma certa resistência quanto ao assunto 'sexualidade' e também quanto às discussões da escola sem partido o qual permite aos pais questionarem o que se é dito na sala de aula? Diante disto, gostaria de saber a opinião de vocês quanto aos mecanismos...

    Grata,
    Beatriz da Silva Mello.

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    1. Beatriz, neste momento atual sugiro que nosso "mecanismo" seja uma união agregadora do campo popular capaz de barrar o fascismo em curso!

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  13. Este comentário foi removido pelo autor.

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