Luiz Henrique Silva Moreira

ONESÍCRITO DE ASTIPALEA E OS ASCETAS INDIANOS DO PERÍODO HELENÍSTICO

No presente texto, teceremos um breve comentário sobre a relação travada entre a cultura grega e a cultura indiana durante o período helenístico, que se inicia com a ascensão de Alexandre Magno como imperador do entorno mediterrânico. Usaremos como fonte a expedição de Alexandre na qual Onesícrito, filósofo cínico, entra em contato com os ascetas indianos, denominados pelos gregos como gimnosofistas.

Partindo da clássica, mas ainda fundamental, interpretação para "período helenístico" fornecida por Johann Gustav Droysen, em que se delimita o período entre a conquista do Império Aquemênida na Pérsia por Alexandre Magno, dando continuidade ao projeto engendrado por seu pai Filipe II, até o domínio romano do território grego, período esse que corresponde aproximadamente as datas de 343 a.C. a 34 a.C.. O período helenístico se trata da época na qual a cultura grega torna-se patrimônio comum de todo o mediterrâneo, época de expansão da língua grega, a ponto de suas influências culturais alcançarem até mesmo o extremo oriente.

As possibilidades fronteiriças da pólis foram expandidas para todo o entorno mediterrânico, e ao mesmo tempo que a Hélade influencia na cultura do mediterrâneo, ela também é influenciada, ocorrendo assim uma interação cultural, fator que sustentou o argumento de uma decadência grega em relação à historiografia e filosofia da época. Entretanto, se trata de um argumento baseado em uma visão de pólis idealizada por parte daqueles que o reproduziram, se embasando apenas no modelo único de "cultura" fornecido pela Grécia Clássica, e na noção de que a transição do regime democrático ao monárquico significou o fim da liberdade política [CHAUI, 2010]. Mas tal afirmação se trata mais de uma não relativização das fontes, por parte de historiadores que se guiam pela noção de Clássico e Decadente, do que um fato em si, visto que ao mesmo tempo que temos relatos como as Philippiques de Demóstenes,  onde o mesmo faz discursos de cunho “patrióticos” contra Filipe da Macedônia, também encontramos relatos como o Panegírico de Isócrates onde nos deparamos com um posicionamento a favor do projeto político de Filipe II, frente a ameaça persa. De modo que sendo Isócrates um orador e educador reconhecido, pode-se supor que muitos deviam partilhar de seu posicionamento de unificar o povo grego sob a premissa do idioma, se torna necessário apontar que o projeto de pan-helenismo abrangia só aqueles que falassem o grego e, assim como todos os gregos, Isócretes tinha um discurso hostil para com os povos diferentes, uma inimizade natural para com os “bárbaros” [Bertacchi, 2014, p. 32-33].

Através de Momigliano[1991], poderíamos dividir o período helenístico em dois momentos, em um primeiro momento contamos com os séculos IV e III a.C. como relativos ao momento de transformação do mediterrâneo através da cultura grega, enquanto os séculos II e I a.C. são relativos à progressiva dominação do território mediterrâneo por parte do Império Romano. Entretanto, algo que o historiador italiano nos traz e que é essencial para se compreender o período é a noção de que é no período helênico que os greco-macedônicos, romanos, judeus e celtas obtém o primeiro contato, tendo esse fato ocorrido sob a imagem de Alexandre Magno.

“Durante séculos as colônias gregas prosperaram na Itália não muito longe de Roma. Pelo menos desde o século V a.C. Massalia estivera em contato direto com os celtas. Os judeus viviam numa região em que mercenários gregos frequentemente estavam postados e que mercadores gregos visitavam com frequência. Os iranianos (persas), que cedo se livraram do controle helenístico e sempre escaparam ao de Roma, eram também a única nação que os gregos haviam conhecido e aquilatado antes de Alexandre.” [MOMIGLIANO, 1991, p. 10]

É ainda, através da influência de Alexandre que os gregos entram em contato com a cultura da Índia. Não que os mesmos não a conhecessem, mas antes das expedições de Alexandre os gregos tendiam à ignorar quase tudo sobre a Índia, tanto que não se encontra o termo "brahman" entre os escritores da época clássica, segundo Juan Segura [1990] o termo aparece pela primeira vez com Diodoro Sículo no século I a.C.. Em uma dessas expedições de Alexandre que os filósofos entraram em contato com os indianos ascetas, os quais chamaram de gimnosofistas[γυμνοσοφιστής].Um dos relatos mais conhecidos sobre a expedição de Alexandre à Índia e o contato com os gimnosofistas, se trata passagem em que o Imperador macedônico querendo conhecer os ascetas indianos envia Onesícrito de Astipalea para que convocasse os mesmos, entretanto o fato original se encontrava em uma obra de Onesícrito que se perdeu, de modo que esse relato chega até nós de maneira resumida através de Estrabão e Plutarco.

Plutarco, em Vida de Alexandre, nos narra a passagem da seguinte maneira:

“Vieram a seu poder dez dos filósofos gimnosofistas, aqueles que com suas persuasões haviam contribuído para que Sabas se rebelasse e que maiores danos haviam causados aos Macedônios. Como tinham a fama de que eram muito hábeis em dar respostas curtas e concisas, foi proposto certas perguntas obscuras, dizendo que seria morto primeiro o que não respondesse de maneira adequada, e assim por diante, em ordem, convocando ao mais velho que respondesse. Perguntou ao primeiro se eram mais em sua opinião os vivos ou os mortos, e este disse que os vivos, porque os mortos já não eram. Ao segundo, qual cria maiores bestas, a terra ou o mar, e disse que a terra, porque o mar fazia parte dela. Ao terceiro, qual é o animal mais astuto, e respondeu: "Aquele que o homem ainda não conheceu". Perguntando ao quarto com que objeto havia feito que Sabas se rebelasse, respondeu: "Com o desejo de que viveria bem ou morreria mal". Sendo perguntando ao quinto qual lhe parecia que havia sido feito primeiro, o dia ou a noite, respondeu que o dia havia sido criado antes, e precedeu a noite em um dia, e acrescentou, vendo que o rei mostrava maravilhar-se, que sendo enigmáticas as perguntas era preciso que também fossem as respostas. Mudando, então, de método, perguntou ao sexto como conseguiria ser alguém o mais amado entre os homens, e respondeu: "Se sendo o mais poderoso não se fizesse temer". Dos demais, perguntando como poderia qualquer um, dos homens, fazer-se deus, disse: "Se fizesse coisas que ao homem é impossível fazer" e perguntando outro da vida e da morte qual podia mais, respondeu que a vida, visto que poderia então suportar vários males. Perguntando ao último até quando viveria bem o homem, respondeu "Até que não tenha por melhor a morte que a vida". Voltando-se então ao juiz, mandando que se pronunciasse, e dizendo este que haviam respondido de maneira não satisfatória, respondeu Alexandre "Pois você morrerá primeiro respondendo dessa maneira"; o qual replicou: "Não há tal, ó rei! A não ser que se contradiga, havendo dito que morreria o primeiro o que pior houvesse respondido".” [PLUTARCO, Vie d'Alexandre, 64] [Tradução nossa]

O relato de Plutarco prossegue com o diálogo entre Onesícrito e alguns gimnosofistas, e também com a advertência feita à Alexandre de que o mesmo deveria comandar o império de forma centralizada e não à tanta distancia [PLUTARCO, Vie d'Alexandre, 65]. Vamos momentaneamente nos ater à conversa entre Onesícrito e Dandamis, onde o filósofo cínico diz ao gimnosofista que na Grécia havia filósofos, Diógenes, Pitágoras e Sócrates, que viviam igual aos ascetas indianos e Dandamis responde que os gregos erravam ao antepor o que é de costume (katànómon) ao que é por natureza (katàphýsin). Por mais que como nos mostra Vivero [2003, p. 11-12] que Onesícrito se aproveitou do momento para "pôr na boca dos sábios que viviam no confim do mundo um pensamento que equivalesse bastante com as ideias defendidas por seu próprio mestre, Diógenes de Sínope", podemos concordar com Segura [1990, p. 55] e pressupor que este fato ocorreu na realidade histórica, apesar da narração imparcial feita por Onesícrito.

A partir desse relato podemos conjecturar acerca de como os próprios gregos tomaram para si o acontecimento do período helenístico. Não se tratava de mero desprezo perante o diferente, o fato de Onesícrito confiar as palavras de seu mestre Diógenes, o cínico, às bocas dos gimnosofistas, nos mostra que os mesmos detinham algum reconhecimento para com a sabedoria indiana. Não se tratava apenas de palavras, ao final de contas, se tratava de um modo de vida que o mesmo julgava como certo e para justificar essa maneira de viver atribui perante seu Imperador, e os gregos, o atribui aos ascetas indianos. Dessa forma julgamos por impossível insistir em uma antiquada tese de decadência perante o período helenístico, logo que não se trata apenas de uma mescla cultural, mas do momento em que o entorno mediterrâneo se torno em um "lugar comum" de diversas culturas, e a herança do período ainda se faz sentir na contemporaneidade. 

Referências
Luiz Moreira é graduando em História [licenciatura] pela Universidade Estadual do Paraná. Membro discente do Núcleo de Estudos Scrinium [NES].

ALBALADEJO VIVERO, Manuel. ‘Elementos utópicos en la india descrita por onesícrito’. POLIS: Revista de ideas y formas políticas de La AntigüedadClásica, n. 15, p. 7-33, 2003.
BERTACCHI, André Rodrigues. O Panegírico, de Isócrates: tradução e comentário. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 2014.
CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: As escolas helenísticas. v.2. São Paulo: Companhia das letras, 2010.
MOMIGLIANO, Arnaldo. Os limites da helenização: A interação cultural das civilizações grega, romana, céltica, judaica e persa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1991. 
OLIVER SEGURA, Juan Pedro. Los gimnosofistas indios como modelos del sabio asceta para cínicos y cristianos. In: GONZÁLEZ BLANCO, Antonio; BLÁZQUEZ MARTÍNEZ, José M.ª (ed.). Antigüedad y Cristianismo: Monografias históricas sobre la antigüedad tardía. v. 7. Murcia: Universidad de Murcia, 1990. p. 55-62.
PLUTARQUE. Vie d'Alexandre. In: Vies dês Hommes Illustres. Tradução Alexis Pierron. v. 3. Paris: Libraire-ÉditeurCharpentier, 1853.

3 comentários:

  1. Olá, Luiz. Parabenizo pela escrita do seu texto, escolha temática e estilo discurso, o qual revela uma interessante abordagem acerca dos gregos e suas relações e interações com os indianos. Dito isso, o que mais chamou a atenção na sua narrativa é o uso de expressões que, na história cultural, equivalem a conceitos – com sentido e significados – que buscam dar luz à experiências humanas a partir da historicidade de seus contextos, entre eles, destaco “mescla cultural” e a ideia de “cultura que influencia e é influenciada”. Partindo destes pressupostos, sabe-se que a produção discursiva é fruto do interesse de seu autor, bem como, dos interlocutores que dialogam, criticam e propiciam um cenário intelectual para que se orquestrem ideias em relação a algo, ou alguém. Neste caso, de que forma você avalia a produção destes discursos no tocante a hierarquização ou nivelamento cultural, em que a perspectiva de uma (pseudo) cultural se sobrepõe ou se mescla a outra, dando a alusão de que aquilo que não pertence a “minha cultura” pode ser “influenciada” por ela? Dentre seus estudos, o que você entende conceitualmente por “mesclas culturais”, aqui pensando especificadamente o seu recorte temporal e espacial? (Afinal, é um conceito que pode ser pensando de forma mais ampla) Aos pesquisadores da Antiguidade, como se define esses sujeitos que produzem estes discursos, narrativas e fontes escritas? Seriam “intelectuais”, ou faço erroneamente o uso deste termo? Perdoe a ignorância, mas é uma dúvida que tenho há algum tempo e não encontrei uma resposta que satisfizesse minha curiosidade. Att. Jessica Caroline de Oliveira

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  2. Olá Jéssica, agradeço aos comentários. Fico feliz que ao menos o texto à tenha levado a refletir sobre o assunto. Como a resposta se alongou, irei responder em duas partes, me perdoe pelo o inconveniente.
    Em primeiro lugar, eu acredito sim que os gregos tinham um sentimento "xenofóbico" (xenos é a palavra grega para estrangeiro se não me engano) muito forte para os diferentes, principalmente para aqueles que não falavam grego, basta que nos lembremos da origem do termo "bárbaro" que se trata de uma apelido pejorativo ao estrangeiros pois no entendimento deles esses não falavam, mas apenas balbuciavam "bar bar bar". Essa informação eu tirei de de Finley, em "Os Gregos Antigos". Sendo assim acredito que temos que levar em conta esse sentimento dos gregos em conta quando falamos em "cultura". Mas talvez se trate do modo o qual esse discurso foi se construindo com o passar dos tempos, pensando que já na Antiguidade havia discursos contra os macedônicos, como o de Demóstenes, e discursos a favor de um pan-helenismo, discursos esses que não excluíam o sentimento xenofóbico, pois se tratava de uma união para derrotar os Persas, como no caso de Isócrates. À partir do meu entendimento, acredito que devamos olhar para o modo como esse discurso de deslegitimação da cultura alheia se constrói durante o Renascimento, o filósofo argentino Enrique Dussel faz uma discussão sobre em seus textos sobre modernidade, onde ele mostra que o termo "Idade das Trevas" não era relativo à questão da religião e seu domínio durante o período, mas dizia respeito à cultura do período, até porque após o Renascimento se espera a Prensa de Gutenberg para fazer uma reforma religiosa, mas se tratava de um termo que visava deslegitimar a cultura produzida durante o medievo, e por isso o Renascimento é uma revolução cultural e não uma reforma religiosa, não estou dizendo que os dois não se relacionem, mas se tratava de um sentimento de inferioridade por eles olharem para o período e apenas identificarem produções culturais de muçulmanos e indianos. Partindo das considerações de Dussel, eu acredito que visando legitimar a antiguidade clássica, e deslegitimar o medievo, passa a se criar essa ideia de decadência em torno do período helenístico que é o momento de início dessas mesclas culturais e essa deslegitimação era necessária para criar um ideal de "Atenas Clássica" e perfeita, Nicole Loraux discute essa questão em "A invenção de Atenas" e mostra através de análises de orações fúnebres como Atenas não é o que se narra sobre ela, como você bem colocou, se trata de frutos de interesses daqueles que narram e tudo mais, mas visando uma crítica historiográfica eu acredito que não seja tanto o modo como os gregos se relacionaram com os povos do mediterrâneo, mas o modo como essa história chegou até nós através dos renascentistas.

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    1. E agora visando responder a questão mais diretamente acho que ambas as culturas se influenciam mutuamente, mas o sentimento de recusa ao estrangeiro permanece no grego de modo que certas características culturais pouco mudam durante o período em questão, o contato com o "diferente" obviamente deixou marcas em ambos mas acredito que somente à luz da longa duração que podemos enxergar essas mudanças. Eu tento ter bastante cuidado ao usar o termo "cultura" ao falar de produtos sociais de interação no mundo antigo, pois se trata de um termo contemporâneo e acredito que transferir tais termos para épocas podem ser problemáticos em certa medida, desse modo quando tenho que me ater diretamente à essas produções eu escolho o termo "Paideia" que é relativo à formação grega, ou o ideal de formação que se tinha, de modo que acredito que nos momentos em que há a mudança do ideal de Paideia tal motivo seja decorrente de uma interação cultural que necessita um novo modelo de "homem grego", eu tomaria essas alterações por mesclas culturais.
      E novamente acerca do perigo de introjetarmos conceitos às nossas fontes, eu prefiro definir ou como eles se definem, ou como os seus contemporâneos os definiam, obviamente relativizando definições pejorativas. Mas o caso é que poderia se definir muito bem Heródoto dentro do conceito de poeta grega, entretanto, evita-se fazê-lo porque os próprios gregos tinham o mesmo como historiador, então não se trata de tentarmos definir se o mesmo é ou não um historiador, mas tentar entender qual o conceito de historiador para o período em que o mesmo escreveu e se falou dele. Eu tento seguir essa linha de raciocínio quando tenho que buscar alguma definição de alguma personagem, e por isso optei por tratar Onesícrito como filósofo, por ser discípulo de Diógenes. Porém, é necessário ressaltar que por vezes estas denominações não eram únicas, de modo que o filósofo também poderia ser um conselheiro do imperador sem deixar de ser filósofo.
      Não é ignorância nenhuma, é uma dúvida que pega todos os historiadores, acredito que o modo como se resolve isso é apenas o modo que torna o ofício mais confortável. Essa é apenas a minha posição de tentar ser mais fiel às fontes que seja possível.
      Deixo claro que se tratam de opiniões pessoais, e interpretações pessoais das leituras postas aqui, mas estou à disposição para o que for preciso.
      Abraço, Luiz.

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